EU É UM OUTRO: OS INFERNOS DE RIMBAUD
Sofrimento, evasão e loucura em nove poemas em prosa. “Uma temporada no inferno”, livro de Arthur Rimbaud, marca o início da nossa temporada dedicada às variadas representações do inferno na literatura.
Escrito entre abril e agosto de 1873, em meio ao desfecho da relação conturbada entre Rimbaud e o também poeta francês Paul Verlaine, a obra descreve uma descida vertiginosa ao inferno. Isabelle, irmã de Rimbaud, contava que sua mãe, após ler o manuscrito, teria perguntado ao filho o que ele queria dizer ali afinal: “Eu quis dizer o que isso diz, literalmente e em todos os sentidos”, teria sido sua resposta.
Considerado um dos fundadores da poesia francesa moderna e até hoje uma forte referência para aqueles que buscam transgredir nas mais diversas artes, Rimbaud nasceu em Charleville, em 1854. Talentoso e precoce, mudou-se para a capital francesa aos 16 anos. “Era alto, de boa compleição, quase atlético, com o rosto perfeitamente oval de um anjo no exílio, cabelos desgrenhados castanho-claros e olhos de um inquietante azul” – assim Verlaine descreveu sua primeira impressão de Rimbaud, com quem viveria uma relação amorosa intensa e de desfecho trágico: Verlaine foi condenado a dois anos de prisão por ter atirado em Rimbaud. A história da publicação de “Uma temporada no inferno”, meses após o episódio, não foi menos infernal. Rimbaud quis custear a primeira edição, mas, como não conseguiu o valor exigido, os exemplares foram retidos pela gráfica de Bruxelas e só seriam redescobertos quase dez anos após sua morte.
De vida errante, Rimbaud deslocou-se por inúmeras cidades da Europa, muitas vezes a pé. Abandonou a escrita aos 21 anos e correu o mundo. Entre outros trabalhos, chegou a traficar armas na África, onde viveu por mais de uma década. Autor de uma obra curta mas expressiva, que inclui ainda livros como “Iluminuras” e “O barco ébrio”, morreu em Marselha, aos 37 anos, em 1891.
"Deveria ter meu inferno pela cólera, meu inferno pelo orgulho – e o inferno da carícia; um concerto de infernos."
“Deveria ter meu inferno pela cólera, meu inferno pelo orgulho – e o inferno da carícia; um concerto de infernos.
Morro de lassidão. É a tumba, vou para os vermes, horror dos horrores! Satã, farsante, queres me diluir com teus feitiços. Me queixo. Me queixo! Um golpe do tridente, uma gota de fogo.
Ah! voltar à vida! Lançar os olhos sobre nossas deformidades. E este veneno, este beijo mil vezes maldito! Minha fraqueza, a crueldade do mundo! Meu Deus, piedade, esconde-me, me aguento mal! – Estou oculto e não estou.
É o fogo que cresce, com seu condenado.”
Trecho de “Uma temporada no inferno”, de Arthur Rimbaud, em tradução de Paulo Hecker Filho para a L&PM.
ALBERTO MARTINS E OS INFERNOS DE RIMBAUD: “É o ajuste de contas com a experiência da vidência.”
Difícil precisar, em uma vida como a de Arthur Rimbaud, qual foi o seu grande inferno. Para o escritor e editor Alberto Martins, é importante notar que “Uma temporada no inferno” não é a defesa da condição infernal, e sim a busca por uma rota de fuga. “É justamente uma vontade de escapar do inferno, de sair desse lugar”, diz Alberto.
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Alberto Martins é escritor, editor e artista plástico. É mestre em Literatura Brasileira pela USP e, entre muitas obras, publicou “Poemas” (1990), “Goeldi: história de horizonte” (1995), que conquistou o Prêmio Jabuti na categoria infantojuvenil, “A história dos ossos” (2005), e “Lívia e o cemitério africano” (2013). Recentemente escreveu “2020 e outros poemas” para a coleção virtual “pandemia crítica”, da N-1 edições.
Bob Dylan diz que Rimbaud é um de seus poetas favoritos e o incluiu na canção “You’re Gonna Make Me Lonesome When You Go” (1975). Jim Morrison chegou a escrever uma carta de agradecimento a Wallace Fowlie, tradutor da obra de Rimbaud para o inglês. Mas entre vários astros impactados pelo poeta, Patti Smith é provavelmente a mais emblemática. Ela conta, no livro “Só garotos”, que conheceu Rimbaud quando tinha apenas 16 anos e, encantada com sua foto na capa de uma edição de “Iluminações”, mas sem dinheiro, surrupiou o livro:
“Ele possuía uma inteligência irreverente que me acendera, e tomei-o por um compatriota, um parente, e até um amor secreto. […] Era por ele que eu escrevia e sonhava.”
Nascia uma longa história de amor. Em 1973, aos 27 anos, Smith, após um sonho, resolveu, para desespero de Robert Mapplethorpe, organizar uma expedição para a Etiópia atrás de uma mala com a obra perdida de Rimbaud, mas não conseguiu patrocínio. No mesmo ano, deu início a “Rock’n Rimbaud”, uma série de shows em Nova York nos quais, com acompanhamento musical, recitava poemas do autor francês. Em 1975, o poeta ganhou menção em ”Land: Horses/Land of a Thousand Dances/La Mer (De)”, faixa do seu álbum de estreia, “Horses”.
Já na década de 2000, temos “Mummer Love”, poema em prosa publicado no livro “Auguries of Innocence” (2005) – inédito no Brasil – e recitado no documentário “Dream of Life’ (2008), de Steven Sebring (trecho acima). “Mummer Love” também é a faixa-título do álbum em parceria com o Soundwalk Collective (2019), que inclui gravações realizadas em locais por onde o poeta passou na África e participações de Philip Glass e Mulatu Astatke.
Por fim, entre muitos outros episódios que marcaram a relação dos dois, vale destacar que Patti Smith é proprietária da casa em que Rimbaud escreveu “Uma temporada no inferno”, em Roche, na França. O local será transformado em uma residência para artistas e escritores “trancarem a porta e chorar para escrever”, disse à revista piauí, no ano passado.
[Na foto, Patti Smith, por Bruce Weber, 1996]