O INFERNO SOU EU: SATÃ E A QUEDA DO PARAÍSO DE MILTON
Ao longo das últimas 15 semanas, exploramos situações verdadeiramente infernais, como luto, pandemias, violência sexual, nazismo, escravidão, guerras e suas representações na literatura. Mas como encerrar a Temporada no Inferno sem falar do Satã?
Pensando nisso, escolhemos para a nossa última semana da temporada o poema “Paraíso perdido” (1667), de John Milton (1608-1674). Em sua obra-prima, o poeta inglês narra a rebelião de Satã contra Deus, a Criação do Mundo e a Queda do Homem pela desobediência de Adão e Eva no Jardim do Éden. Com 10.565 versos, “Paraíso perdido” é um dos maiores poemas épicos da literatura ocidental – em tamanho e consagração –, ao lado de a “Ilíada” e a “Odisseia” de Homero, a “Eneida” de Virgílio e a “Divina comédia” de Dante. É difícil não ser seduzido pelo Satã de Milton, figura multifacetada, que carrega o inferno dentro de si. Seu sofrimento é o excesso de consciência individual, e não importa aonde ele vá, leva o inferno em seus pensamentos. “Milton tomou o partido do Diabo, sem o perceber”, escreveu o poeta e gravurista William Blake.
Republicano e elitista, anticlerical e religioso, libertário e severo, Milton foi um dos maiores poetas de língua inglesa de todos os tempos e um dos mais difíceis de classificar. “Paraíso perdido” foi o monumento que, no século XIX, os poetas românticos veneraram e incorporaram em seus poemas. Milton começou a escrever “Paraíso perdido” quando tinha 50 anos e já estava totalmente cego. Por causa de seus pronunciamentos políticos, vivia de modo precário, fugindo das perseguições do rei Charles II. Uma das interpretações do livro é de que ele seria um longo poema épico contra a tirania, fosse ela a de um rei ou de Deus.
De personalidade inflexível e combatente, John Milton passou décadas publicando panfletos políticos contra a tirania dos reis e da Igreja. Também escreveu amplamente a favor do direito ao divórcio, que ele defendia à sua maneira severa e racional, repudiando aqueles que viam em seus textos um apelo à libertinagem. A única liberdade que ele admirava era a do espírito, conquistada a duras penas e sacrifícios.
“Pr’a onde erguer tamanha raiva, tanto desespero?”
“P’ra onde erguer
Tamanha raiva, tanto desespero?
Aonde vá o inferno vai. Eu sou
O inferno. E no fundo mais fundo
De espera que corrói sempre mais se abre,
Que faz do meu inferno quase um Céu.”
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Versos 73 a 78 do Livro IV de “Paraíso perdido”, de John Milton, em tradução de Daniel Jonas para a Editora 34.
SILVANA SCARINCI E PAULO MESTRE EM “MUSIC FOR A WHILE”
Na reta final da Temporada no Inferno, convidamos a musicista Silvana Scarinci e o contratenor Paulo Mestre para a apresentação de uma peça do barroco inglês, período em que John Milton escreveu “Paraíso perdido”, o último livro do nosso projeto dedicado a representações do inferno na literatura.
No vídeo, Scarinci e Mestre apresentam “Music for a while”, canção de Henry Purcell que faz parte de uma versão barroca da tragédia de Édipo recontada por um escritor também muito celebrado no século XVII, John Dryden. Na cena infernal introduzida por Dryden na tragédia de Sófocles, surge Alecton, uma espécie de Medusa, com cobras na cabeça e sangue nos olhos, que tem o papel de perseguir os homens que mataram algum parente, como Édipo. A imagem de Alecton representa uma mente atormentada por mil vozes diferentes, um personagem desfigurado pela raiva irracional e violência. Diziam que essas torrentes de emoções poderiam ser acalmadas e a razão restaurada ou pela espada de Perseu, que cortaria a cabeça da Medusa, ou pela música.
“Trata-se de um baixo que se repete indefinidamente, e cria este efeito meio hipnótico, aqui podendo representar a cena de encantamento mágico, de invocação infernal”, explica Scarinci. Acompanhando a voz de Paulo Mestre está a teorba, instrumento derivado do alaúde renascentista. “A teorba tem 14 cordas e, para os padrões da época, tinha um som poderoso e envolvente, capaz de sublinhar todas as paixões que o canto expressava”, complementa a musicista.
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Silvana Scarinci é professora da graduação e pós-graduação em música na Universidade Federal do Paraná, especialista no resgate e na performance de obras do período barroco.
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Paulo Mestre é contratenor. Atuou como solista da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, Orquestra Petrobras Sinfônica e Orquestra de Ouro Preto, entre outras, e foi dirigido por nomes como Roberto Minzuc, Julio Moretzsohn e Carlos Prieto.