O pesadelo de Édouard Louis
Como suportar o peso de um trauma e manter o controle sobre sua própria narrativa?
Em “História da violência” (2020), o escritor francês Édouard Louis ficcionaliza um inferno vivido nas vésperas do Natal de 2012, quando foi violentado por um homem que havia convidado para sua casa. A noite que começou com um flerte nas ruas de Paris terminou em um surto, um estupro e uma tentativa de assassinato – atos de violência brutal dissecados no livro.
Mais do que uma narrativa sobre o episódio, Louis revisita as marcas do seu trauma: a falta de ar constante, a procura por qualquer coisa que o ajudasse a preencher os dias, o medo de um novo ataque e o temor do homem que se tornou. Relembra também a pressão sofrida para que prestasse queixa e os exaustivos procedimentos envolvidos – depoimentos e exames clínicos, reconstrução do crime – que o obrigavam a contar inúmeras vezes o que havia acontecido, como se não bastasse ter vivido aquilo. O escritor questiona ainda o controle da vítima sobre sua história. Ao vê-la enquadrada em uma linguagem racista e homofóbica que não reconhece e rejeita, ele se exaspera. “Tipo magrebino, tipo magrebino”, o policial repete ao descrever o abusador, filho de um imigrante cabila. É daí que surge “História da violência”: uma tentativa de recuperar a própria narrativa.
Édouard Louis nasceu em Hallencourt, no norte da França, em 1992. Na certidão, constava Eddy Bellegueule (algo como “Eddy Bonitão”), nome que lhe rendeu piadas e xingamentos homofóbicos ao longo da infância e da adolescência, e que por isso ele resolveu enterrar em 2013. “Não era só um nome, era também uma história. […] Minha autenticidade é o que eu construo,” disse o escritor em entrevista ao jornal “El País”, em 2018. Em sua estreia literária, “O fim de Eddy” (2018), conta como foi crescer homem gay em uma pequena vila operária. Virou best-seller e foi publicado em mais de 20 países. Louis foi o primeiro da família a concluir os estudos – é formado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris. “História da violência” é seu segundo livro.
“A gente se adapta rápido ao medo.”
“A gente se adapta rápido ao medo. A gente convive com ele com muito mais facilidade do que poderia imaginar. Ele se torna só uma companhia desagradável. Em poucos minutos ou até menos ele alternava entre gritos e sussurros. Eu dominava o medo melhor e melhor. Ele me beijava, ele murmurava: Para de ter medo, eu sou sensível, eu não gosto quando as pessoas têm medo ou choram. Ele passava as mãos nos meus cabelos. Eu me sentia seguro, no tempo dessa frase nada poderia me atingir, sua capacidade de me tranquilizar e proteger era proporcional à sua violência.
Não havia uma escalada de violência. Havia esses intervalos em que ele se pacificava, sua atitude mudava radicalmente e ele se acalmava, baixava o tom; ele murmurava; ele hesitava, ele me prometia: Vai ficar tudo bem, não tem por que se preocupar. Ele beijava minhas orelhas, as bochechas, os lábios. Eu lhe falava de seu futuro, mas não adiantava.”
Trecho de “História da Violência”, de Édouard Louis, em tradução de Francesca Angiolillo para o selo Tusquets, da editora Planeta.
ALEXANDRE VIDAL PORTO COMENTA “HISTÓRIA DA VIOLÊNCIA”
“Os escritores escrevem não apenas de si mesmos, mas também para si mesmos. Para muitos, e eu me incluo entre esses muitos, a literatura é uma maneira de resolver, solucionar, contemporizar uma situação difícil.”
O escritor Alexandre Vidal Porto comenta formas de revisitar episódios traumáticos por meio da narrativa ficcional, como faz Édouard Louis, autor de “História da violência”. Segundo Alexandre, a escrita pode ser desestabilizadora, mas também terapêutica.
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Alexandre Vidal Porto (@alexvidalporto) é diplomata, mestre em direito pela Universidade de Harvard e escritor. Publicou os romances “Matias na cidade” (2005), “Sergio Y. vai à América” (2014) e “Cloro” (2018), finalista do prêmio Jabuti em 2019.