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Zona cinzenta

Por Sheyla Miranda

5 de março de 2024
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A jornalista espanhola Begoña Gómez Urzaiz fala sobre As abandonadoras (trad. Eliana Aguiar), ensaio de fôlego que tensiona as contradições da maternidade

Desde que meu filho nasceu, há pouco mais de um ano, eu não lia um livro com tanta velocidade e interesse. Uma névoa espessa, forjada no cansaço e na sucessão de pequenas tarefas que monopolizam o cotidiano com um bebê, fez com que minha capacidade leitora adquirisse um outro ritmo, muito mais arrastado. Devorei, no entanto, as mais de trezentas páginas de As abandonadoras (Zahar), obra de estreia da jornalista espanhola Begoña Gómez Urzaiz, a ser publicada no Brasil em 2024 pela Zahar. Aos 43 anos, há mais de vinte escrevendo sobre cultura e comportamento para os principais veículos de seu país, Urzaiz escolheu um tema espinhoso para destrinchar em seu primeiro ensaio longo: mulheres que abandonaram seus filhos por diversas razões ligadas não à necessidade, mas ao desejo.

Mãe de duas crianças, de nove e cinco anos, a autora costura reflexões honestas e desconcertantes sobre as ambivalências da maternidade contemporânea (que provocaram em mim suspiros sonoros de identificação) a histórias de escritoras, artistas, cientistas e até personagens de ficção que, em diferentes momentos do século XX, se retiraram voluntariamente da cena doméstica e do papel de mãe devotada.

Essas mulheres abandonaram os filhos para se dedicar à vida intelectual e à escrita, como a escocesa Muriel Spark e a britânica Doris Lessing, ganhadora de um Nobel de Literatura; para viver uma relação em outro país e ver decolar sua carreira no cinema, caso da atriz sueca Ingrid Bergman; ou para exercitar a liberdade sexual, tal qual a russa radicada na Espanha Gala Dalí. Na Itália, Maria Montessori, uma das primeiras mulheres a ter um diploma em medicina, desenvolveu ao longo de uma década um método educacional para a primeira infância famoso em todo o mundo, que faz triplicar o preço das escolas só de ter seu nome citado no programa. Montessori não testou o método no filho, que viveu nas redondezas de Roma com uma cuidadora até os quinze anos.

Lidas em sequência, as histórias reunidas no livro dão a dimensão de como uma mulher abandonar um filho segue sendo um tabu social imenso, talvez o maior da maternidade; homens, como se sabe, abandonam filhos todos os dias. No Brasil, quase quinhentas crianças são registradas diariamente sem o nome do genitor, segundo dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen) relativos aos últimos cinco anos. Os abandonadores não carregam o mesmo estigma social e geralmente não carregam a mesma culpa. Em um dos capítulos, Urzaiz investiga as diversas origens da noção de culpa materna, infiltrada até nos ossos das mães que retrata, e nos dela própria, e nos meus.

As abandonadoras surge na esteira de livros recentes de ficção e não ficção que buscam mostrar como a escolha de ser mãe – ou o desejo de deixar de ser – é um território movediço e coalhado de contradições, como A filha perdida, de Elena Ferrante, A filha única, de Guadalupe Nettel, Mães arrependidas, de Orna Dornath, e Maternidade, de Sheila Heti. A seguir, a entrevista que Urzaiz, que vive em Barcelona, me concedeu por Zoom numa quinta-feira no finalzinho da tarde, quando os filhos estavam para chegar da escola.

Logo no início do livro sabemos que por muito tempo uma pergunta incômoda te rondou: “Que tipo de mãe abandona o próprio filho?”. As mulheres retratadas deixaram os filhos para trás por questões ligadas à própria subjetividade, não por razões econômicas ou conflitos geopolíticos, por exemplo. Por que, você acha, te intrigaram tanto os abandonos motivados pelo desejo, não pela necessidade?

Begoña Gómez Urzaiz O tema me interessa justamente por estar inserido numa zona cinzenta, cheia de sombras. Ninguém precisa gastar muita energia para explicar um abandono por necessidade extrema, somos culturalmente programados para entender algo assim. Agora a coisa muda de figura quando uma mãe abandona o filho para atender os próprios desejos, por motivos que podem ser considerados egoístas. Isso escapa completamente daquilo que se espera de uma mãe em quase qualquer cultura. Saiu há pouco um livro nos Estados Unidos chamado Monster: A Fan’s Dilemma, em que a autora Claire Dederer conta a história de vários artistas que na vida privada tiveram comportamentos altamente condenáveis, de “monstros” [um deles é Roman Polanski, condenado por estuprar uma menina de treze anos]. No caso das artistas mulheres, e Dederer também cita o caso de Doris Lessing, os gestos moralmente condenáveis têm a ver principalmente com uma maternidade fora dos padrões. Considera-se que o maior crime de uma mãe é abandonar um filho.

Um dos casos que me pareceram mais interessantes é o da Muriel Spark, por ela ter tido um arranjo muito pouco comum às escritoras e muito comum aos escritores de sucesso de seu tempo: se dedicar inteiramente à literatura tendo por trás uma mulher cuidando de tudo que não fosse a escrita, como tarefas da casa, burocracias editoriais, gestão da agenda de compromissos…

BGU Essa história é mesmo muito fora da curva. Sempre existiu a dúvida de se Muriel Spark e Penelope Jardine tinham uma relação amorosa, o que para mim não faz a menor diferença. O interessante é que Spark encontrou e conviveu com uma mulher que exercia as funções de esposa de escritor, um ofício muito particular que facilitou a vida de centenas de autores homens [Urzaiz cita no livro os casos de Vladimir Nabokov, Mario Vargas Llosa, Gabriel García Márquez e John le Carré].

Daria para dizer que a combinação da presença de Jardine à entrega do filho, primeiro a um convento, depois aos cuidados dos pais, impactou na produção de Spark, no sucesso que ela alcançou?

BGU Spark foi muito prolífica, escreveu mais de vinte romances, e outros tantos títulos de poesia, ensaio, memórias. Claro que se trata de um exercício de “E se…”, mas não é difícil levantar a hipótese de que sem essa combinação talvez ela não tivesse chegado tão longe. É um arranjo ao qual muitos homens ainda têm acesso, sem ter que fazer mudanças tão dolorosas na vida. Talvez ela não tivesse viajado tanto, o que é sempre complicado quando se tem um filho pequeno. Talvez não tivesse passado as longas temporadas que costumava passar em Nova York, ou não tivesse acessado círculos literários importantes, o que lhe abriu muitas portas. Algumas mulheres conseguiram conciliar uma intensa produção literária e intelectual com o exercício da maternidade, como Susan Sontag, ainda que no caso dela o custo tenha sido alto, já que sempre teve uma relação bastante conturbada com o filho.

Você conta que pelo menos duas das mulheres retratadas no livro tentaram abortar quando se descobriram grávidas, mas não conseguiram. Na Espanha, o aborto é permitido nas primeiras catorze semanas de gestação desde 2010, e no Brasil o aborto ainda é criminalizado. Fiquei pensando, ao ler essas histórias, que muito sofrimento teria sido evitado se elas tivessem tido autonomia sobre seus corpos.

BGU Sim, teria evitado muito sofrimento para essas mulheres e para as crianças. Na Espanha, temos um dado que às vezes passa despercebido e que me parece importante enfatizar: a maior parte das mulheres que abortam já são mães, são mulheres que já conhecem a experiência e não querem repetir a dose, seja por questões econômicas ou por qualquer outro motivo. O aborto precisa ser legal, gratuito e universal. Mas temos assistido a um retrocesso em várias partes do mundo, como nos Estados Unidos, onde a Suprema Corte revogou no ano passado o direito ao aborto nas doze primeiras semanas, algo que era permitido desde 1973 agora está proibido. Ainda me parece inconcebível que isso tenha acontecido, e a lição que fica é que os direitos das mulheres nunca estão assegurados definitivamente. Tomara que a questão possa avançar logo no Brasil.

Falando em direitos das mulheres, me chamou a atenção como você tentou disfarçar para colegas e empregadores o tanto que sua vida mudou quando seu primeiro filho nasceu, temendo não ser mais chamada para trabalhar. Isso tem muito a ver com o que diz Claudia Goldin, pesquisadora que acabou de ganhar o Prêmio Nobel de Economia. Uma das coisas que ela demonstra é que a disparidade salarial entre homens e mulheres se acentua após a chegada do primeiro filho.

BGU Pois é, e o salário dos homens quando se tornam pais cresce. É uma matemática absurda. Então, dá para entender que uma mulher não queira mencionar o filho, que não queira assumir uma identidade de mãe, porque em alguns trabalhos a maternidade é algo que te desvaloriza. Eu tinha medo de ser vista como uma pessoa desatualizada, afinal, as pessoas pensam: “O que uma mãe de bebê sabe sobre as últimas séries, sobre as músicas que acabaram de sair? Ela é só uma mãe, ela não sabe de nada”. Isso gera quase uma forma de auto-ódio. Foi uma coisa que me preocupou muito quando me tornei mãe, mas agora não tenho problema em falar sobre meus filhos nos meus artigos, no meu podcast [Urzaiz coapresenta o podcast sobre cultura contemporânea Amiga date cuenta].

Os momentos em que você fala sobre os desafios cotidianos para conciliar a maternidade com outras demandas da sua vida, sobretudo a escrita, me conectaram muito ao livro. Tem aquela passagem em que você conta que se frustrava e se irritava quando seu filho caçula aparecia todo fofo vestindo um pijama do Snoopy assim que você ligava o computador para trabalhar nesse livro, ainda antes do amanhecer. Como foi falar sobre as suas ambivalências maternas?

BGU Foi mais difícil do que eu podia imaginar. Ninguém quer ser chamada de mala madre e eu tinha medo de ser julgada. E lá no fundo sentia uma espécie de ilegitimidade para escrever sobre as histórias dessas mulheres, já que eu não fui abandonada pela minha mãe nem abandonei meus filhos. Mas o tema mexeu muito comigo e eu pensei: por que não? Sou filha, sou mãe, sinto na pele as ambivalências da maternidade e intuía que, para o livro funcionar, deveria existir um compromisso de testemunho da minha parte. E essa é uma pauta recorrente na conversa entre escritoras: esperase de autoras um nível muito maior de exposição do que se espera de autores, ainda mais no caso de uma escritora estreante. A autora britânica Olivia Sudjic escreveu sobre isso no livro Exposure.

Em um dos capítulos você investiga as origens da culpa materna e fala de como todas as expectativas em relação à educação e ao futuro das crianças costumam recair sobre as mulheres. Como sair da armadilha que responsabiliza unicamente as mães pela criação dos filhos?

BGU A única forma de sair dessa armadilha é coletivamente. Porque quando alguém diz “Tire a culpa de você”, no fundo está te dando uma responsabilidade extra, a de se policiar sozinha para não sentir culpa, e isso é praticamente impossível. Você não tira a culpa de você, a sociedade tira a culpa de você. Quando eu estava escrevendo o livro e saía de casa bem cedo aos domingos para trabalhar, passava umas horas e minha mãe me mandava um WhatsApp: “Você já voltou para casa?”. Duas horas depois, mandava outro: “Você já está com as crianças?”. Entende o problema? Não deveriam nos fazer esse tipo de pergunta.

Sheyla Miranda é jornalista, tradutora e pesquisadora audiovisual. Doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP, pesquisa tradução e gênero e é professora da Casa Guilherme de Almeida.

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