Descrição
Pé do ouvido se inventa como um poema de formação, gênero que, como se sabe, não existe. Nos romances assim designados, uma personagem jovem parte em viagem e, a cada experiência vivida, forja, por acumulação, sua personalidade e visão de mundo. A narradora de Alice Sant’Anna certamente é jovem, mas já rodou muitas estradas. Entre uma Brook Street qualquer e o Morro Dois Irmãos, o que ela aprende é a perder – certezas, casas ou amores -, aluna aplicada na dura disciplina ensinada por Elizabeth Bishop. Em duas partes assimétricas, no longo monólogo da viagem e no breve recado da volta, ela depura a dúvida. É tão impossível fotografar a lua com o celular quanto apreender a vida na linguagem. Tradutora obsessiva, que a todo momento recorre à poesia japonesa para certificar-se de seus limites, ela confronta palavras (“a diferença entre solitude/ e loneliness qual é?”) e a própria expressão (“se tivesse nascido/ em outro país a voz seria outra/ e as coisas que escreve e pensa/ também seriam outras”). O poema está no que se perde, na tradução e na vida. No que a narradora não chega a compreender inteiramente de uma cultura ou na impermanência fatal de um amor. “o momento em que você percebe/ que está vivendo um momento/ por algum motivo/ um momento mais importante/ que os outros” traduz o instante decisivo de seu périplo banal. Reinstalada num quarto todo seu, a poeta que já viu materializar-se no tédio da casa um portentoso rabo de baleia agora adverte: “do outro lado da porta mora um leão/ é preciso aprender/ a abrir a porta do quarto/ com toda a delicadeza para que o leão/ não acorde”. É nessa delicadeza tensa que Alice afina a sua voz. Ao pé do ouvido, como se sabe, fala-se baixo. Falar assim é conquistar um interlocutor exclusivo e atento: ouvido à altura da boca, rendido por desejo, curiosidade ou apreensão. É cena de intimidade, mas pode ser de ameaça. Drama ambíguo, como o da fera adormecida no cômodo ao lado. Paulo Roberto Pires
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