Entremundos
Por Adriana Ferreira Silva
27 de novembro de 2024
No romance A dissociação, a filósofa francesa Nadia Yala Kisukidi trata das experiências da diáspora africana sob a perspectiva de uma jovem negra que pratica a arte de dissociar corpo e mente
A heroína de A dissociação, primeiro romance de Nadia Yala Kisukidi, não tem nome. Tudo o que sabemos sobre ela, parte de sua própria descrição. Órfã ainda bebê, aos dez anos ela para de crescer, levando ao desespero a avó materna, obcecada por encontrar um motivo que justifique a deficiência da neta. A culpa recai sobre o finado pai da menina, o africano que lhe “roubou” a filha querida e deixou a herança maldita. Em meio aos devaneios da avó e à pobreza da pequena cidade no norte da França onde vivem, a protagonista encontra na desagregação entre corpo e mente uma maneira de furtar-se às mazelas mundanas.
É esse dom, por ela chamado de “a arte da dissociação”, que interessa a Nadia, filósofa francesa que descreve o périplo dessa jovem negra por paisagens subterrâneas, hotéis decadentes e comunidades revolucionárias, experimentando lembranças de pessoas que jamais conheceu, ouvindo mortos que sussurram os caminhos que ela deve percorrer e registrando em um Manual as ideias que povoam seu imaginário.
Autora de livros acadêmicos – entre eles, Dialogue transatlantique (Anacaona), em coautoria com Djamila Ribeiro –, Nadia é conferencista da Universidade Paris 8 e adepta de uma doutrina pautada por teóricos como o camaronês Fabien Eboussi Boulaga, que defendia repensar o sistema filosófico sob a perspectiva africana.
Resultado do que afirma ser o encontro da “imigração intraeuropeia e extraeuropeia” – o pai era um ativista congolês, e a mãe, uma médica francesa –, a escritora foi, em 2022, cocuradora da bienal de arte Yango II, em Kinshasa, na República Democrática do Congo, e hoje atua em movimentos antirracistas ao lado de militantes como Assa Traoré, cujo irmão Adama foi morto pela polícia francesa em 2016.
Você é filósofa, atua como professora e é autora de livros teóricos. O que te inspirou a escrever esse seu primeiro romance, A dissociação?
Nadia Yala Kisukidi – Na verdade, esse é o meu segundo romance. O anterior jamais será publicado, pois é muito autobiográfico. Mas a literatura nunca foi uma segunda opção. Apesar de adorar a construção conceitual que faz parte do processo filosófico, gosto de contar histórias com personagens, falar de coisas sobre as quais nada sabemos, acontecimentos surpreendentes etc. E nem tudo é teoria. Às vezes, precisamos descrever nossa experiência sobre certos lugares, certas paisagens. É preciso dizer a nós mesmas: “Uau, isso nunca foi mostrado dessa maneira, sob essa perspectiva”. Por outro lado, é preciso ter confiança e amar aquilo que escrevemos, e foi por isso que cheguei à literatura por um caminho mais longo que o da filosofia. Além disso – e falo isso com ironia –, de maneira geral, quando nos dedicamos à filosofia, pensamos em algo mais sério, com um rigor conceitual quase matemático. É como se o filósofo tivesse de renunciar ao prazer de contar e ler histórias, coisa reservada às crianças. Assim, também quero confrontar esse tipo de preconceito.
Ao contrário da filosofia ou da história, por exemplo, que se atêm às teorias e descobertas empíricas, a literatura permite fantasiar sobre fatos não registrados. Para você, como isso se mistura?
NYK – Muito interessante essa afirmação, pois gosto de dizer que esse romance, A dissociação, é uma diáspora – termo que utilizamos para falar do deslocamento de pessoas que deixaram sua terra natal para viver no estrangeiro – e é também uma alforria pelo espírito. Essa é uma experiência de vida complexa porque, mesmo morando fora, somos habitados por um segundo país. Então, viver em diáspora é como ter o dom da onipresença e estar em dois lugares ao mesmo tempo. É quase um milagre. Na literatura, como não precisamos seguir a lógica ou uma racionalidade rigorosa, podemos habitar a linguagem do maravilhoso. E é isso que interessa nesse romance. São dois países que se sobrepõem: a base é o norte da França, mas as experiências que alimentam o imaginário da protagonista são congolesas. Isso não acontece o tempo todo, mas personagens importantes como Luzolo, Jeanne-Marie Mansala, Pierre Lembika remetem ao Congo central, região marcada pela escravidão e a colonização. Mesmo estando na França, essas figuras são atravessadas por essa história do mundo negro. O poder da literatura está em acumular todas essas camadas, sobrepondo passado, presente e futuro.
Em A dissociação, essas camadas que você menciona aparecem nas vivências da protagonista e nas narrativas que ela escreve em seu Manual. De onde vêm essas fabulações?
NYK – Antes de mais nada, foi um prazer escrever esse livro. É verdade que, em determinado momento, me questionei se deveria parar, mas decidi deixar a imaginação trabalhar, quase de forma intuitiva. A dissociação é uma declaração de confiança à fantasia. É interessante ver como diferentes fases narrativas se entrelaçam no romance e lançam luz umas sobre as outras. Não tenho uma explicação racional ou reflexiva para isso. Há a fábula principal e outras pequenas histórias, um pouco como num romance picaresco.
O conceito de dissociação que dá nome ao livro é usado pela protagonista para se desconectar de situações difíceis que ela vive ao longo de sua trajetória. Como chegou a essa ideia?
NYK – Posso explicar essa prática a partir do racismo, que está presente em todo o romance, mas não é central. Isso faz parte também do motivo que me levou à filosofia. Para mim, uma das promessas de experiência mais radicais da filosofia é a da recusa do corpo, de poder se dissociar de uma estrutura recebida pelo mundo com violência por causa da cor da pele, pelo fato de ser mulher, vinda de um meio social não necessariamente abastado. Minha vivência corporal não foi imediatamente feliz. Nessa circunstância, a primeira coisa a fazer é recuperar como sujeito, como uma mulher livre, esse corpo objetificado pela sociedade. Mas é possível ainda dizer a si mesma que esse corpo é o túmulo da alma, como encontramos nas filosofias antigas e no platonismo, e que a vida real é a do espírito. A dissociação é o momento em que deixo para trás o corpo, que não é mais uma fonte de violência, e tento ter uma vida plena e completa. Eu me dissocio, de fato, no cotidiano. Quando estou aborrecida, sou capaz de gesticular, responder aos estímulos sociais, mas minha mente está em outro lugar. Foi interessante transformar essa habilidade simples e cotidiana num romance.
Por que você escolheu a filosofia?
NYK – Ah, essa é uma história bonita (sou uma pessoa muito lírica!), que tem duas partes. Aos 13 anos, descobri por acaso essa palavra obscura nas aulas de história, quando o professor explicou sobre a Revolução Francesa, e disse que havia sido a guerra dos filósofos – o que me levou a pensar que as ideias governavam o mundo e, portanto, estudar filosofia era fazer a revolução. Claro que depois as coisas mudaram um pouco. Mas é verdade que os modos de emancipação propostos pela filosofia, a promessa de viver de acordo com a razão, livrar-se dos preconceitos, esse desejo de liberdade foi o que me levou a ela.
Você nasceu na Bélgica, filha de uma europeia e de um congolês, que migraram para a França quando você era criança. Como esses trânsitos te impactam?
NYK – Sou uma verdadeira filha da imigração intraeuropeia e extraeuropeia. Todos os imigrantes que me marcaram estão ligados aos acontecimentos políticos ou à política. Em outras palavras, a “grande história” encarna em vidas individuais e em pequenas narrativas. Minha mãe, que é branca, francesa, tem uma trajetória de imigração essencialmente italiana, mas não só. Parte de sua família fugiu do fascismo durante a ascensão de Mussolini. Por parte de pai, estou conectada às lutas de independência africanas, pois ele nasceu numa região chamada de Congo Central, e teve de deixar seu país quando Mobutu [Sese Seko] chegou ao poder e implantou uma ditadura de 30 anos, que bloqueou o futuro do então Zaire – atual República Democrática do Congo. Esses percursos me moldaram no plano político, estético e existencial: estou unida à violência dentro da Europa e a uma jornada pós-colonial.
Como seus pais se conheceram?
NYK – Numa daquelas ironias das vidas marcadas pela história pós-colonial, meu pai exilou-se na antiga potência imperial da Bélgica, onde, nos anos 1970, existia uma grande diáspora congolesa superpolitizada. Minha mãe, por sua vez, queria ficar longe de sua família, muito estrita naquela época, e também se afastar da Europa. Com essa intenção, ela escolheu estudar medicina tropical, e um dos mais renomados centros de pesquisa dedicados ao tema ficava na Antuérpia. Foi lá que ela conheceu meu pai e iniciou um relacionamento de mais de 40 anos, que durou até a morte dele, em 2022. Eu nasci dessa história de amor.
Por que vocês imigraram para a França?
NYK – Meu pai era um militante de esquerda com uma situação financeira instável. Quando eu fiz seis anos, eles decidiram se mudar para a França em busca de melhores oportunidades. É engraçado porque, assim que cheguei aqui, em um segundo perdi tudo o que tinha em relação à Bélgica, porque a história nacional francesa é uma espécie de rolo compressor que assimilamos imediatamente. Na escola, todas as pessoas faziam piada do jeito como eu falava, o que me levou a perder o sotaque belga em um mês. A cor da minha pele também me tornava uma estranha, mas isso não era possível mudar. Foi nesse momento que tomei consciência do que era habitar uma pele negra.
Você costuma dizer que, apesar de não ter irmãos, nunca foi filha única, pois convivia com a luta política de seus pais. Como era esse ambiente?
NYK – Minha mãe abraçou a luta política do meu pai, não no sentido de submissão feminina a uma autoridade masculina. Ela sempre desejou deixar a Europa, mas não sabia para onde ir, enquanto meu pai sempre quis voltar ao Congo. O sonho dele era o mesmo das pessoas que frequentavam minha casa, seus amigos etc. Eram ativistas anti-imperialistas e panafricanistas que atuavam pela liberdade de países africanos como Congo, África do Sul, mas também marxistas da América Latina. Cresci com a memória do golpe militar contra Allende, no Chile, por exemplo.
Como isso a influenciou?
NYK – Minha mãe e eu vivemos o sonho do meu pai de retornar às terras africanas libertas do jugo imperialista e neocolonial. Uma vontade ligada à liberdade e emancipação do país, que nem meu pai nem minha mãe conseguiram realizar, mas que eu mantenho. Tenho muitos projetos e espero um dia ter um ancoradouro lá também. Além disso, apesar de ter vivido em zonas de abandono social – e digo isso de maneira um pouco dramática –, sendo uma menina negra, pobre, nunca tive raiva de minha cor ou de minhas origens, porque o meio em que cresci foi de pessoas que sempre lutaram por sua dignidade, nunca de comunidades passivas e resignadas. Gosto de descrever esse ambiente de uma maneira um pouco heroica, pois ele me influenciou muitíssimo.
Quando foi sua primeira visita ao Congo?
NYK – Foi em 2008, com quase 30 anos. Meu pai e eu vivemos uma experiência magnífica. Não tem nada a ver com autodescoberta ou resgate de identidade, pois não é assim que me relaciono com minhas terras ancestrais. Não me considero uma pessoa apartada delas. Mas pude conhecer mais a história do país e reconstruir laços com entes queridos. Há dois verões, minha mãe e eu vamos sempre visitar minha família em Kinshasa. Infelizmente agora sem meu pai, que partiu no ano passado.
Num dos trechos de A dissociação, a protagonista afirma que “os mortos são palavras”. Em que sentido você diz isso?NYK – Nesse romance, não queria que a morte fosse silenciosa. Agora que trago comigo meu pai, familiares e outras pessoas queridas que partiram, eles continuam a falar dentro de mim. Minha experiência de morte não é a do silêncio. Acredito que essa é a dimensão luminosa de A dissociação. Mesmo a desaparição completa de um povo pode não ser exatamente um extermínio, mas uma ausência consentida, para evitar sua destruição. Não ser visto pelo outro é uma maneira de preservar sua existência. Talvez esse romance seja sobre não ficar tão obcecado com a questão do corpo, caso contrário, esquecemos que a vida pode assumir diferentes formas.