Escrever para a mãe, escrever contra a mãe
Por Ieda Magri
20 de março de 2024
Em Essa coisa viva (Todavia), de Maria Esther Maciel, acompanhamos a narradora Ana Luiza em seu acerto de contas com a mãe morta, numa série de cartas tanto rememorativas quanto acusatórias. O que motiva essas cartas parece ser o aqui e agora da narradora: imersa na pandemia de Covid-19, isolada do mundo, ela tem apenas a companhia da cachorra de seu vizinho Tiago, que é a sua ligação de fato com o mundo de fora de casa e de fora do sufocamento causado pelo que ela chama de dupla peste — a pandemia e a situação do país, nas mãos de um presidente despreparado e seu séquito. Para além do conteúdo perturbador das cartas, então, o leitor se depara com a própria rememoração desse momento tão próximo quanto inexplorado ainda na ficção brasileira. Não sei se não queremos ou se ainda não sabemos como tocar nesse ponto de nossa história recente, talvez porque tudo soe ainda tão presente na realidade desse momento em que vivemos, talvez porque necessitemos de um distanciamento mínimo para fabular. O certo é que imaginar, ou entrever, a cena de escrita de Ana Luiza nos coloca num cenário ainda pouco explorado na literatura brasileira contemporânea e só por isso o livro de Maria Esther Maciel seria uma boa novidade.
Digamos que as cartas revelem, entre muitas coisas que vou deixar para a descoberta dos leitores, uma infância e uma adolescência difíceis, uma maternidade doentia — se bem que não dá pra ter certeza quanto à sanidade da filha… Podemos confiar em seu desabafo, podemos sentir compaixão sem ouvir a mãe? Quase desejamos as respostas do além, mas não as temos. Se dermos confiança à narradora, as cartas servem para que ela possa enterrar a mãe, sair do campo de sua influência nefasta: “Neste momento, sinto você como uma sombra que vai se desvanecendo”. É esse desvanecer que vamos acompanhando, como se as cartas fossem longas sessões de análise e de cura.
O que está muito vivo, porém, na história de Ana Luiza e sua mãe, muito mais do que seu complicado relacionamento, é o vínculo que a narradora tem com os animais e as plantas. Se um sonho com baratas a afeta terrivelmente e é essa “coisa viva” subindo pela sua perna o que sugere pela primeira vez uma imagem para o título do livro, um porquinho ganha o status de amigo: “Hoje prefiro nem tentar imaginar o que fizeram com ele, e mantenho viva minha admiração, meu carinho pelos porcos. São mais inteligentes que muitos humanos que conheço, tão espertos quanto os cães e, como estes, exímios na arte de amar”. Quanto às plantas, as referências são muitas e intensas, ocupando o papel de amigos imaginários e de espelho.
Quando a pressão do ambiente desconfortável do convívio com a mãe se tornava excessiva, Ana Luiza subia nas árvores do quintal e contava às frutas suas histórias e percalços. Quando foi preciso se proteger da mãe colocando uma trava na porta do quarto, emerge a semelhança da situação com a Mimosa pudica: “Voltando às plantas, lembrei-me de uma passagem do tal livro do italiano sobre a Mimosa pudica, que costumamos chamar de Maria-fecha-a-porta ou dormideira. Tínhamos dela no quintal de nossa casa, é aquela que fecha as folhinhas quando é tocada por alguém. Na botânica é chamada de sensitiva e foi estudada por muitos cientistas de renome”. O tal italiano é Stefano Mancuso, mas, quando li essa passagem, me veio à memória uma cena de outro livro, que se referia a um experimento que “consistia em levar as plantas para andar de carruagem por Paris. No início do passeio elas reagiam ao movimento e fechavam as folhas, mas logo se acostumavam e não as fechavam mais”. Imaginar essa cena da carruagem cheia de plantinhas que se fecham aflitas, depois ganham confiança e passeiam relaxadas, é um exercício vigoroso para mim. Sempre a imagino como o início de romance ou um filme de época. Está no livro de Carola Saavedra O mundo desdobrável: ensaios para depois do fim, mas agora, quando vou a ele para copiar essa passagem, descubro que Saavedra também a tomou de Mancuso.
O que o experimento com a Mimosa pudica sugere, além da ideia de que as plantas também têm memória, talvez uma memória do corpo, é que rememorar o que constrange, o que traz fel para a vida de Ana Luiza, é uma espécie de treinamento, um meio equivalente a passear pelas ruas de Paris, sendo os episódios dolorosos como os solavancos da carruagem um meio de treinar o corpo e a memória a se acostumarem com o vivido. Ana Luiza, como a Mimosa pudica, assim, pode parar de se fechar e se encolher por medo do impacto que essas cenas têm. É por isso que o anúncio da primeira dose da vacina, apontando para o fim da epidemia, coincide com o desvanecimento da imagem da mãe, com seu enterro de fato depois de oito meses da sua morte, com o fim do luto. A Mimosa pudica pode, depois do exercício de escrita das cartas e da passagem a limpo do relacionamento perturbador entre mãe e filha, ficar aberta para o sol, para os toques leves dos fantasmas que não têm mais presença.
Em toda a relação da personagem com a botânica, aparece o traço certeiro da autora, evocando seu belíssimo Pequena enciclopédia de seres comuns, ou mesmo o recentemente republicado Literatura e animalidade: é a mão firme que põe para falar outros seres, que nos põe a interagir com o vivente, fora da grosseira classificação que opõe humanos e não humanos.
Ieda Magri é professora de Teoria Literária da UERJ e pesquisadora do CNPq. É autora dos romances Um crime bárbaro (Autêntica Contemporânea, 2022) e Uma exposição (Relicário, 2021), entre outros.