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O fim de uma longa estação

Por Stephanie Borges

11 de junho de 2023
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Em seu 60º aniversário, Josy faz a mala, abandona a comemoração organizada por sua família e vai embora. Frustrada com um casamento de 35 anos mantido por comodismo, ela age por impulso, pega a kombi parada há anos na garagem e se refugia num camping para descobrir como quer viver dali para a frente.

Sessenta primaveras no inverno, uma parceria entre a escritora francesa Ingrid Chabbert e a artista holandesa Aimée de Jongh (Nemo, 2023, tradução de Renata Silveira), é uma história em quadrinhos breve que entrelaça temas como o envelhecimento, os papéis sociais reservados às mulheres e a redescoberta do amor e do prazer.

Ao se ver sozinha, Josy decora o interior da kombi, que é adaptada para viagens e contém uma cama e uma mesa. Escolhe sua próxima leitura e experimenta alegrias cotidianas que demonstram como a convivência familiar a deixou numa posição de cuidadora que lhe dava pouco espaço para seus hábitos e desejos. Mas é preciso defender a liberdade recém-conquistada, pois seus filhos, Stéphanie e Martin, insistem em que ela volte para casa.

A dificuldade da protagonista em articular seus sentimentos e justificativas é tratada em sequências de imagens. Inicialmente, Josy se recusa a se explicar, acostumada a se calar. Recusa os telefonemas dos filhos, que a acusam de egoísmo. Entretanto, quando fala abertamente de sua infelicidade e solidão, seus argumentos são desconsiderados. Se antes o silêncio servia para evitar conflitos, agora ele está ligado ao cansaço. Ainda que mencione suas razões, ela não é ouvida. Para sua família, nenhum motivo parece bom o suficiente para desistir de 35 anos de casamento, nem mesmo o desejo de ser feliz como lhe convém.

No camping, ela fica amiga de Camélia, que mora num trailer. A jovem mãe de Tom, um bebê de oito meses, faz serviços como faxineira e, com sua renda instável, enfrenta a dificuldade de encontrar endereço fixo. Embora tenham personalidades diferentes – Josy é tímida, Camélia é espontânea –, a cumplicidade entre as duas se manifesta com a ajuda entre vizinhas, troca de confidências e discordâncias acaloradas que não duram muito tempo.

Camélia, que admira a coragem de Josy e a encoraja a se divertir e fazer novas amizades, descobre que uma de suas clientes organiza reuniões de divorciadas em sua casa e consegue um convite para Josy. Assim ela é acolhida no Clube das Vilãs Livres (CVL), grupo de mulheres que abandonaram o marido, foram rejeitadas pela família e se encontram para tomar drinks, dançar e trocar experiências.

No primeiro jantar, Josy conhece Christine, com quem sente de imediato ter uma forte afinidade. As duas ficam amigas e começam a se encontrar para conversar, passar o tempo juntas. Um dia percebem que estão apaixonadas e decidem viver esse amor. Contam às amigas do CVL, e as outras “vilãs” se alegram com o novo casal. Tudo parecia bem até o dia em que a filha de Josy as vê juntas e dirige ofensas homofóbicas à mãe.

Josy então se afasta de Christine e se sente culpada pela felicidade que conheceu depois de deixar o marido. Ela sofre com o fim da relação, mas teima em continuar sozinha, numa espécie de penitência por ter magoado seus filhos e o ex-marido. Quando um acidente repentino a obriga a confrontar a fragilidade da vida e lidar com sua família, Josy percebe que precisa tomar uma decisão e ser firme em sua escolha.

O desfecho não oferece um final feliz convencional, afinal Sessenta primaveras no inverno não é uma comédia romântica, mas uma HQ que retrata a jornada de uma mulher em busca de entender suas necessidades e assumir um compromisso consigo mesma. Diante da passagem do tempo e da incerteza da vida, os papéis sociais e as expectativas dos filhos perdem importância. A felicidade possível é muito melhor que uma vida de aparências.

Em momento algum Josy demonstra intenção de romper definitivamente com os filhos ou se afastar dos netos. A família lhe oferece apenas a opção de fingir que está tudo bem e seguir uma rotina monótona enquanto espera pela morte. Uma vez que o cenário é tão desolador, ir embora não é uma escolha egoísta, mas talvez a única maneira de usar o tempo a seu favor. Dar fim ao que não faz mais sentido, para enfim descobrir um modo de vida que acolha a liberdade e a alegria.

© Gabriella Maria/Afroafeto

Stephanie Borges é escritora. Seu livro de estreia, Talvez precisemos de um nome para isso, venceu o IV Prêmio Cepe Nacional de Literatura. Traduz prosa e poesia. Publicou ensaios nas revistas Serrote e Zum. Foi curadora da Temporada no Futuro da Livraria Megafauna (2021).

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