O encanto das palavras
Por Stephanie Borges
14 de maio de 2023
De acordo com o Dicionário Kimbundu-Português, de A. de Assis Júnior, “mukanda” significa missiva, carta. O Novo Dicionário Banto do Brasil, de Nei Lopes, acrescenta os sentidos de escrita e papel. Em sua graphic novel mais recente, Mukanda Tiodora (Veneta, 2022), o premiado quadrinista Marcelo D`Salete parte de cartas ditadas por uma mulher escravizada que deseja comprar sua alforria para imaginar como viviam as pessoas negras em São Paulo por volta de 1860.
Com a intenção de localizar sua família e pedir ajuda, Teodora Dias da Cunha, escravizada e analfabeta, ditou algumas cartas a Claro Antônio dos Santos. Sequestrada na região de Congo-Angola, Teodora chegou ao Brasil na juventude e foi levada do litoral para a região de Campinas. Anos depois, vendida ao cônego José da Terra Pinheiro, que a trouxe para a capital, foi separada do marido e do filho. Suas cartas, porém nunca foram enviadas — foram encontradas entre os pertences de Claro, suspeito de roubar objetos da casa do padre. Os textos foram anexados ao processo no qual Teodora foi testemunha.
Mukanda Tiodora é uma ficção que mistura pesquisa histórica e especulação para recriar o passado do ponto de vista de pessoas negras. Assim, ao longo da trama Teodora, Claro e o advogado e poeta abolicionista Luiz Gama convivem com personagens ficcionais. A Teodora mencionada no arquivo colonial se transforma aqui em Tiodora, ou Tiô, encarregada do trabalho doméstico na casa do cônego e que ainda é obrigada a vender frutas como escrava de ganho. Depois de entregar os lucros ao senhor, ela guarda sua parte para comprar sua alforria.
A narrativa segue o rumo ficcional quando Claro registra o ditado de Tiodora numa carta que Joana deveria deixar com um tropeiro. No entanto, há um desencontro entre a menina e o mensageiro. É aí que Benê, um garoto livre, resolve entregar a correspondência. As informações sobre o paradeiro do filho e do marido de Tiodora são imprecisas, não há a menor garantia de que estejam vivos, mas mesmo sem ideia dos perigos em seu caminho o menino resolve seguir viagem.
Os capítulos se alternam entre diferentes personagens. Enquanto Tiodora espera uma resposta e Joana teme pela segurança de Benê, acompanhamos uma conversa entre Luiz Gama e seu amigo José Ferreira de Menezes, escritor e fundador da Gazeta da Tarde, no Rio de Janeiro. O diálogo entre os abolicionistas apresenta o contexto efervescente dos anos 1860, quando os relatos da Revolução Haitiana e da Revolta do Malês ainda inspiravam várias insurreições entre escravizados.
D’Salete, nessa versão quadrinizada, aponta as divergências entre os intelectuais negros que trabalhavam pela mesma causa. Enquanto Menezes empenhava seus esforços para criar pressão política no Rio de Janeiro, então capital do Império, Gama considerava legítimas táticas como fugas, criação de quilombos e envenenamentos de senhores. O ponto comum entre ambos é o uso da palavra para que ideias, poemas e artigos abolicionistas circulassem e ganhassem força.
O roteiro também dá espaço para ações e gestos de solidariedade entre pessoas negras capazes de criar o senso de comunidade numa sociedade hostil e violenta. Joana, por exemplo, estimula Benê a frequentar as aulas secretas de alfabetização da irmandade da Igreja do Rosário. A decisão de Benê de ser o portador da carta de Tiodora está relacionada a um momento de gentileza entre os dois.
A narrativa inclui os sonhos dos personagens como experiências, presságios e mensagens do mundo espiritual, como em geral eles são interpretados nas religiões de matriz africana. É assim que entendemos algumas relações entre os personagens e o pavor de um fazendeiro que estimula seus capatazes a se valer do terror para manter a disciplina. D’Salete observa sutilmente como a violência num regime escravagista não é apenas física. Famílias separadas, filhos abandonados e pessoas que passam a vida sem conhecer suas origens são exemplos de traumas que ressoam em diversas narrativas da diáspora negra.
Mukanda Tiodora é uma leitura que, além de prazerosa, é comovente por valorizar as várias formas como o povo negro resistiu à desumanização da escravatura e do racismo no pós-abolição. Seu ritmo ágil, com várias cenas de suspense e de ação construídas sem diálogos, decorre de sua arte, com enquadramentos que lembram a linguagem cinematográfica.
Com essa reflexão a respeito do que a escrita e a leitura podem representar para pessoas que durante anos foram proibidas de estudar, D’Salete nos lembra que a luta pela liberdade também passa pela imaginação e pelas escolhas feitas ao contar nossas histórias.
Stephanie Borges é escritora. Seu livro de estreia, Talvez precisemos de um nome para isso, venceu o IV Prêmio Cepe Nacional de Literatura. Traduz prosa e poesia. Publicou ensaios nas revistas Serrote e Zum. Foi curadora da Temporada no Futuro da Livraria Megafauna (2021).