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Bem longe da química

Por Stephanie Borges

3 de setembro de 2023
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Pente quente, da antropóloga estadunidense Ebony Flowers (Veneta, 2023, tradução de Dandara Palankof), é uma coletânea de histórias breves que tem os cuidados com os cabelos como premissa. O aprendizado com cortes, tratamento e penteados se desdobra em reflexões sobre autoestima, relações familiares e amizade. Em meio às memórias do primeiro relaxamento, às tranças entre amigas e episódios constrangedores no metrô e num bar, a autora aborda as ambivalências de mulheres negras em relação ao cabelo, que costuma suscitar inúmeras opiniões não solicitadas sobre a aparência.

A primeira história, que dá título ao livro, pode surpreender, afinal, a pressão para que a protagonista “arrume o cabelo” vem das colegas negras na escola. O bullying não está ligado apenas ao padrão de beleza branco, há também um ideal de feminilidade negra a ser alcançado quando a estética embranquecida não é opção: as cantoras pop e de R&B, geralmente magras e com os cabelos alisados, são os modelos almejados pelas adolescentes. Além disso, a protagonista vive momentos de tensão com a mãe, que se entristece ao levar a menina ao salão para relaxar o cabelo e se irrita ao perceber como a filha se envaidece com isso.

O relaxamento, porém, é decepcionante não só por ser demorado e incômodo, mas também temporário. Flowers deixa pistas sutis sobre questões mais complexas de construção de identidade e autoestima. Os pais da protagonista se mudam para um bairro onde as filhas possam crescer convivendo com mais crianças negras, mas isso não torna a experiência delas mais fácil. Estar entre semelhantes minimiza a possibilidade de episódios racistas, mas desenvolver o orgulho e a consciência racial são um processo complexo e mais duradouro que a adolescência.

Em “Mãezona”, a terceira história da coletânea, os cabelos remetem à memória afetiva. Em um momento de luto, a personagem Cora lembra com carinho da avó enrolando os cabelos e de brincadeiras com a peruca da matriarca. O flashback em que sua mãe e sua avó discutem enquanto uma penteia a outra ilustra a dinâmica familiar na qual afeto e conflito parecem indissociáveis.

Entre uma e outra HQ, Flowers inseriu cartuns que parodiam anúncios de produtos para cabelo. Não bastassem ser promessas inalcançáveis, há imagens estereotipadas de mulheres africanas com saias de ráfia, caricaturas de modelos com cacheados e crespos de diferentes texturas, cremes voltados ao público infantil. Ao ironizar a indústria de cosméticos, a autora oferece um alívio cômico a temas delicados e uma crítica ácida à linguagem usada para se referir a pessoas negras.

“Lena, minha irmã caçula” é uma das histórias mais angustiantes de Pente quente: relata os impactos do racismo na saúde mental de uma jovem. Constrangida pelas colegas de softbol que lhe pedem para tocar seu cabelo, Lena passa a arrancar alguns fios a cada vez que se sente desconfortável numa situação que envolve diferenças raciais. Embora a família tenha lhe oferecido acompanhamento médico e terapia, a dificuldade de estabelecer limites e lidar com conflitos a fazem abandonar o esporte para evitar o estresse e o desgaste emocional.

Flowers também evidencia as contradições de suas personagens, como quando a necessidade de ser responsável e forte atrapalha as relações familiares. Em “Irmãs e filhas”, Latreece se irrita desproporcionalmente com sua filha Jasmine, que, como qualquer criança de seis anos, quer brincar o tempo todo. Sua irmã, Gina, lhe pede para ter paciência com a menina e argumenta que, apesar da infância difícil, marcada pelo abandono paterno e pelo trabalho doméstico para ajudar a mãe na criação dos irmãos caçulas, a vida de Latreece mudou e ela pode construir uma relação afetuosa com Jasmine. No entanto, a irmã mais velha segue apegada aos seus traumas e se relaciona com a família à base de críticas e cobranças constantes.

“O último sábado em Angola” encerra o livro celebrando a amizade de mulheres negras: a intimidade de desembaraçar e trançar os cabelos umas das outras, a descontração de um passeio na praia, momentos de contemplação e conversas debochadas nas ruínas do período colonial.

Cabelo é um tema comum entre autoras negras. Inspira obras como o ensaio Esse cabelo, de Djaimilia Pereira de Almeida, os poemas de Cristiane Sobral em Só por hoje deixarei meu cabelo em paz, o filme Kbela, de Yasmin Thayná, e o livro de estreia desta resenhista, Talvez precisemos de um nome para isso. Contudo, obras tão diferentes umas das outras revelam como os fios servem de pretexto para tratar de gênero, identidade, autoimagem, relacionamentos e memória. Pente quente contribui para uma bibliografia que ultrapassa a mera discussão de padrões estéticos e ressalta a subjetividade e as contradições das mulheres negras.

© Gabriella Maria/Afroafeto

Stephanie Borges é escritora. Seu livro de estreia, Talvez precisemos de um nome para isso, venceu o IV Prêmio Cepe Nacional de Literatura. Traduz prosa e poesia. Publicou ensaios nas revistas Serrote e Zum. Foi curadora da Temporada no Futuro da Livraria Megafauna (2021).

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