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A tirania da beleza

Por Stephanie Borges

9 de julho de 2023
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Quadrinhos de não ficção geralmente são associados a relatos autobiográficos, como Persépolis, de Marjane Satrapi, ou a projetos jornalísticos, como Notas sobre Gaza, de Joe Sacco. As HQs de não ficção da sueca Liv Strömquist, por sua vez, se aproximam do ensaio: seus livros estimulam a reflexão sobre questões da vida contemporânea, unindo pesquisa histórica e referências à filosofia e à cultura pop. No entanto, ao longo de uma exposição bem fundamentada a autora utiliza a linguagem dos quadrinhos para criar intervenções ficcionais e momentos de alívio cômico, resultando em um estilo singular.

Em seu livro mais recente, Na sala dos espelhos: autoimagem em transe ou beleza e autenticidade como mercadoria na era dos likes & outras encenações do eu (Companhia das Letras, 2023, tradução de Kristin Lie Garrubo), a quadrinista observa como os padrões de beleza tornaram-se ainda mais complexos em tempos de redes sociais.

Segundo Strömquist, quando atrizes e modelos representavam os ideais de corpos belos, magros e louros na cultura ocidental, era mais simples para mulheres comuns reconhecerem o cuidado com a aparência como um elemento da vida profissional de figuras públicas e aceitarem sua beleza fora do padrão. 

Com a popularização do Instagram, a imposição se torna mais difusa, pois, além da exposição diária a imagens de celebridades capazes de despertar sentimentos de comparação, existem discursos sociais associando a beleza ao bem-estar e à saúde. Passamos a acompanhar as rotinas de exercícios, cronogramas capilares e dicas de cuidados com a pele dos nossos amigos. A disseminação da ideia da beleza como um resultado do aprimoramento pessoal agrava ainda mais a insatisfação com a autoimagem. 

Na sala dos espelhos pode ser considerado um desdobramento dos livros anteriores de Strömquist: A origem do mundo: uma história cultural da vagina ou a vulva vs. o patriarcado (2018) e A rosa mais vermelha desabrocha: o amor nos tempos do capitalismo tardio ou por que as pessoas se apaixonam tão raramente hoje em dia (2021), pois o narcisismo, o desejo de ser amada e o controle sobre os corpos de mulheres são temas comuns às três obras.

Além do equilíbrio entre temas árduos e análises bem-humoradas, a estrutura dos livros é semelhante: nas três HQs, uma parte do roteiro representa a voz da autora em off se dirigindo aos leitores, enquanto os desenhos são dedicados a exemplos e citações. As referências bibliográficas são justapostas a recursos metalinguísticos inesperados, como personagens que interpelam a ensaísta ou momentos nos quais ela faz piada de si mesma. Apesar das características em comum, os três volumes são independentes e podem ser lidos em qualquer ordem. Na sala de espelhos se distingue dos títulos anteriores pelo uso de cores nos quadrinhos e por ser dividido em cinco capítulos. A organização permite a alternância entre narrativas breves, como um relato biográfico da Imperatriz Sissi, considerada modelo de beleza no século XIX, e uma análise de como diversos pensadores cristãos associavam o pecado da vaidade aos corpos das mulheres. 

O capítulo “Menina no espelho”, por exemplo, em diálogo com o filósofo René Girard, comenta o sucesso das irmãs Kardashian no Instagram e o desejo de autenticidade. Já “Os olhos feios de Lia” toma como ponto de partida uma narrativa bíblica para falar das diferentes funções sociais do casamento ao longo da história e de como a beleza passou a ser tratada como um critério relevante na possibilidade de uma pessoa receber amor.

Conceitos e personagens são retomados durante a HQ, estabelecendo um elo entre os capítulos. Assim, as irmãs Kardashian reaparecem em “Vestígios espectrais”, seção que discorre sobre as associações entre a fotografia e o poder a partir de Sobre a fotografia, de Susan Sontag. A última sessão de fotos de Marilyn Monroe com Bern Stern e a exposição das imagens contra a vontade da atriz servem a uma reflexão sobre o olhar masculino e a produção de imagens femininas. Há, porém, um contraponto em um comentário sobre como a fotografia digital possibilitou que mulheres como Kim Kardashian explorem sua beleza e lucrem com ela sem a necessidade de um homem como intermediário.

A quadrinista também se volta para a ficção: faz uma leitura de “Branca de Neve” criticando a associação entre beleza e juventude. Ao ilustrar depoimentos de cinco personagens caracterizadas como rainhas de contos de fada pontuando diferentes perspectivas sobre beleza, desejo e envelhecimento, Strömquist usa o contraste entre texto e imagem para evidenciar como os relacionamentos amorosos e a percepção da própria beleza ainda são considerados um tipo de capital simbólico na vida de várias mulheres.

Na sala dos espelhos observa como a aflição constante com a aparência física se tornou uma fonte de sofrimento, pois inúmeras mulheres dedicam tempo e recursos para se sentirem belas e desejáveis, em vez de aproveitarem o momento presente. Há também uma crítica afiada às redes sociais e a sua demanda por uma performance de autenticidade, responsável por uma cisão angustiante entre o “eu público” apresentado nos perfis e o “eu privado” que nos permitimos ser em nossos momentos de intimidade.

Em suas HQs, Strömquist evidencia as contradições e aspectos risíveis de ideias veiculadas na imprensa, na publicidade, nos livros e que influenciam comportamentos sociais. Seus desenhos têm traços caricaturais e retratam figuras de autoridade como personagens tolos, questionando o poder estabelecido. Ao abordar os padrões de beleza, a autora demonstra a preocupação com o sofrimento físico e psíquico de meninas e mulheres, com um alerta sensível a uma indústria lucrativa de tratamentos estéticos movida por objetivos inalcançáveis e descontentamentos incessantes.

© Gabriella Maria/Afroafeto

Stephanie Borges é escritora. Seu livro de estreia, Talvez precisemos de um nome para isso, venceu o IV Prêmio Cepe Nacional de Literatura. Traduz prosa e poesia. Publicou ensaios nas revistas Serrote e Zum. Foi curadora da Temporada no Futuro da Livraria Megafauna (2021).

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