Poesia de carne, linguagem, terra e água
Por Nina Rizzi
26 de fevereiro de 2023
Natalie Diaz é uma poeta indígena Aha Makav, povo que vive no território hoje integrado pela Califórnia, o Arizona e Nevada, nos Estados Unidos. Quando os espanhóis colonizaram aquela terra, apagaram o nome daqueles que lá estavam e os rebatizaram de Mojave.
Ao buscar “Mojave” no google, as cinco primeiras ocorrências se referem ao sistema operacional da Apple, as demais ao deserto; na segunda página, surge uma referência à reserva nacional Mojave (um eufemismo para confinamento indígena dentro de seu próprio território), vendendo excursões turísticas; na terceira página, sites para compras de pedras e sungas; da quinta à sétima prosseguem as menções ao sistema operacional, compras, deserto e, finalmente, na oitava página há uma entrada da Biblioteca Britânica, em inglês, sobre o povo Mojave, ou mais exatamente Aha Makav. Segundo livro de Diaz, mas o primeiro publicado no Brasil, Poema de amor pós-colonial (2022) recebeu o prêmio Pulitzer de poesia (2021). Na edição em inglês, a dedicatória, omitida na versão em português,* dá o tom dos poemas: “Para as mulheres indígenas e nativas, meninas, pessoas de dois espíritos, trans e não binárias que desapareceram ou foram assassinadas e pertencem a nossas famílias e comunidades, em todas as Américas e outras terras ocupadas — pensando no toque e na ternura que merecem”.
Assim como em sua performance a ferida colonial ainda dói Jota Mombaça imprimiu seu sangue em cada linha das fronteiras do mapa-múndi, a cada página Natalie Diaz firma as feridas da colonização em nossa vida, ainda que o prefixo “pós” possa sugerir superação. E, enquanto a América se criou com o extermínio e o apagamento de corpos indígenas, africanos e dissidentes, Diaz, com memória e ternura, cria um lugar para existir com as pessoas que ama, um lugar na poesia que conjura um futuro a um só tempo ancestral e novo, revelando uma ética e estética indígenas.
Para fundar esse espaço na linguagem, a poeta se vale da interseção da língua do colonizador, espanhol e inglês, ao mesmo tempo que reivindica suas próprias imagens, formas e linguagem indígena: “Carrego um rio. É o que sou: Aha Makav. Isso não é uma metáfora”.
Nessa interseção, a impossibilidade de traduzir essa cultura e essa língua (“Como posso traduzir — não em palavras e sim em crença — que um rio é um corpo, tão vivo quanto eu ou você, que não pode haver vida sem rio?”) implica uma ética e uma estética que só podem ser escritas por aproximação, um risco que não deixa de ser, contudo, exuberante: “Quando você diz meu nome, você quer dizer, A cascavel está sentada ali, observando, esperando por ela.// Eu também sou ela.// […] Você pode reescrever, mas não apagar”.
Além da relação corpórea e una com a água, as estrelas, as pedras e os animais, os poemas oferecem experiências familiares e culturais alheias ao âmbito indígena, como o basquete que a poeta praticava com seu irmão — presença constante no livro— e com colegas da reserva indígena onde cresceu (ela chegou a ser atleta profissional), e se alguém se questionar por que indígenas são bons de basquete a resposta está ali: “pelo mesmo motivo que somos bons de cama” (entre outras razões). Do mesmo modo que através de jogos de linguagem com o break, a dança de rua, cria imagens poderosas: “meus irmãos dançam break/ para a bala deles — o jerk/ e a stang leg. Eles estouram, trancam/ e caem pela bala,/ um movimento que os faz se contorcer/ no chão”. Assim como cria ironicamente jogos com a palavra raça (race em inglês, “raça”, também significa “correr, corrida”), traduzidos habilmente por Rubens Akira Kuana: “algumas vezes raçudo quer dizer corra”.
E, sobretudo, para além dos dados da “aritmética americana”, mais do que revelar o horror e os efeitos da colonização (“Indígenas são menos de/ 1 por cento da população dos Estados Unidos,/ 0,8 por cento de 100 por cento.// Ó, meu país eficiente”) e sua relação entreculturas, Poema de amor pós-colonial nos mostra que é na comunidade e no amor que surge a trégua: “Por que não ir agora na direção das coisas que amo?/ […] Vamos aonde há amor,// ao rio, de joelhos debaixo d’água”. E faz isso com a poesia mais pura.
Ler este livro nos traz a sensação de que também o escrevemos, com a memória, a imaginação e o desejo, reivindicando um lugar que supere a paisagem lírica, transformando linguagem em ação. E já que “Escrever é ser devorada. Ler, estar cheia”, saímos da leitura absortas e também preenchidas, “pelos muitos corpos de carne, linguagem, terra e água”, encontrando na comunidade e no amor um meio de curar feridas.
*Em conversa com a editora brasileira, após a publicação desta coluna, nos foi explicado que a tradução para o português brasileiro foi feita conforme a edição original norte-americana, e a dedicatória mencionada no texto foi incluída somente na posterior edição inglesa (Faber). Seguindo as recomendações da agente e da autora, a tradução foi feita com base na primeira publicação, editada pela Graywolf Press.
Nina Rizzi é escritora, tradutora, pesquisadora e professora. É autora de livros como tambores pra n’zinga, sereia no copo d’água e o infantil A melhor mãe do mundo. Formada em História pela Unesp e mestra em Literatura Comparada pela UFC, traduziu, entre outras obras, livros de Alejandra Pizarnik, Susana Thénon, bell hooks, Alice Walker, Toni Cade Bambara, Ijeoma Oluo e Abi Daré.