Ninguém quis ver, então pixamos
Por Nina Rizzi
16 de julho de 2023
Ninguém quis ver (Companhia das Letras, 2023), segundo livro da poeta carioca Bruna Mitrano, tem uma dedicatória simples e direta: “para Adelina”. Mesmo sem saber até então quem era Adelina, rabisquei na página: “penso que as mulheres a quem os livros são dedicados são minha avó perdida”.
Palavras podem ser bibelôs bem-arranjados na estante, podem ser um arranjo floral sobre a mesa de jantar, preenchendo ou escondendo o cotidiano, se tornando um tipo de acessório, de perfumaria. E qual o problema em ter palavras bonitas decorando e perfumando os sentidos? São como canções entoadas num idioma desconhecido, mas de que gostamos mesmo sem entender o que dizem, porque soam bem.
As palavras de Bruna Mitrano não se enquadram nessa categoria, não são perfumadas, não são bonitas de ouvir, e pensar sobre elas pode revirar o estômago. São bichos ariscos, denúncias que não se calam com o jornal do dia seguinte, permanecendo de pé como poesia.
Como aquela cena do filme Batman (Tim Burton, 1989) em que o Coringa, interpretado por Jack Nicholson, diz aos seus capangas “vamos expandir nossas mentes”, invadindo um museu – monumento de barbárie –, desligando a música “clássica”, botando Partyman de Prince num rádio de pilha e destruindo as belas artes da humanidade – retratos da fidalguia de Rembrandt, bailarinas ricas de Degas e o George Washington (primeiro presidente dos EUA), de George Stuart –, debochando da própria vanguarda de Duchamp ao pixar num quadro “Coringa esteve aqui”, conservando intata, porém, a incômoda “Figuras com carnes” de Francis Bacon. E, ao encontrar a repórter Vicki Vale, interpretada por Kim Basinger, aterrorizada com a lesa-cultura, lhe diz que suas fotografias de mortos sob escombros podem não ser bonitas, mas são, sim, arte, ao expor como numa pixação, e como neste livro, o que ninguém quis ver, afinal:
a vida é assim
a câmera em close na velha
o rosto rachado em contraste
com a pele mole dos braços
o vestido puído deixa ver
os ossos do peito
os seios sacos vazios
pendendo sobre a barriga
[…]
a câmera passeia pela casa
panelas e canecas empilhadas
um instrumental triste
e o narrador dizendo que três semanas depois
a velha morreu
[…]
porque o repórter não deu comida pra velha
porque não levava comida com ele
[…]
close no rosto passivo da minha mãe
é assim, a vida é assim
Se o sentido da poesia é aberto, como um jogo de armar que provoca interpretações distintas no ato de leitura, neste livro tudo é anterior, como um rastro deixado no ar pela mão antes de pegar caneta e papel, como o olho que vê antes de fotografar, em que a simples e direta dedicatória é de tal modo visual que antecipamos meninas e suas avós famintas, tristes, varrendo um barracão incontáveis vezes como quem espera “a sopa rala no fim do dia” e não canta Für Elise, mas “para Adelina”, e que, ainda que não possam escolher o que comer, escolher onde viver, comungam de um reconhecimento, e, portanto, pertencimento.
Mitrano pertence a este mundo, a esta época e, assim como o Coringa, pixa o cânone e a vanguarda, inscrevendo a “Teresa” de Manuel Bandeira em território e terreiro incendiados, mas vivos, portanto, prontos para a manifestação:
teresa
a primeira vez que vi
incendiarem um animal vivo
não pensei na justiça
só pensei no corpo
por que tão pequeno
por que tão sem alma
a segunda vez que vi
incendiarem as casas do meu bairro
não pensei mais nada
os olhos alimentaram o fogo
e Omolu dançou sob as palhas.
As cenas se desenrolam na casa, no bairro, na infância, em família. E embora se utilize de possesivos no singular “minha avó”, “minha mãe” etc., ao fazer do eu-lírico um eu em primeira pessoa, a poeta nos traz para o centro da memória, estamos ali, testemunhas de uma história que “ninguém quis ver”, contada tão baixinho que ensurdece feito um tiroteio, tornando tudo plural: “nossa avó”, “nossa mãe” etc.
E assim os poemas vão acontecendo diante de nós, nos tirando desse lugar de meros “contempladores” de arte sentados em banquinhos. Seus versos rebentam na carne, levamos a mão à boca, levantamos a mão, gritamos, porque não é impossível apenas testemunhar:
1989
infância é ganhar
uma lu patinadora
de natal e depois da ceia
quitar a dívida
no quarto de menina
uma lâmina de luz lhe cortava o rosto
e a língua na boca se movia
bruna
faz aquilo que o papai gosta.
Estamos diante da poesia, construída sob escombros, naquele momento fulcral a quem não basta testemunhar: o que fazer quando poemas, além de ser poesia, escancaram o horror do mundo?
Talvez, da mesma maneira que faz a poeta, pixando e rasurando paisagens, fazendo da escritura uma arte que ultrapassa o retrato, a denúncia, e é poesia. Porque é pela arte que entramos em contato com nosso eu mais profundo e nos afetamos de um jeito que o Censo e os jornais jamais conseguiriam.
E, com certeza, querendo ver, jamais esquecendo e se posicionando:
não esqueço
minha função
era apanhar ovos
no galinheiro
uma vez apanhei
sem querer
um ovo galado
não esqueço
a imagem do feto de frango na frigideira
um feto fritando no óleo
um malformado biquinho
duas penas boiando
não esqueço
a voz da minha avó
dizendo que não precisa chorar
a gente reza por ele.
Nina Rizzi é escritora, tradutora, pesquisadora e professora. É autora de livros como tambores pra n’zinga, sereia no copo d’água e o infantil A melhor mãe do mundo. Formada em História pela Unesp e mestra em Literatura Comparada pela UFC, traduziu, entre outras obras, livros de Alejandra Pizarnik, Susana Thénon, bell hooks, Alice Walker, Toni Cade Bambara, Ijeoma Oluo e Abi Daré.