Inventar a mãe e a mão que escreve
Por Nina Rizzi
18 de junho de 2023
Em seu discurso ao receber o Nobel de Literatura, Toni Morrison disse que “nós fazemos a linguagem. Essa pode ser a medida das nossas vidas […] só a linguagem nos protege do terror das coisas sem nome. Só a linguagem é meditação”. Essa linguagem não diz respeito apenas a como nos comunicamos cotidianamente: ao estruturar o pensamento-escrita-ação e criar mundos, escrever nos dá poder sobre nós mesmas, afinal:
a poesia, uma criança muito viva
de grandes olhos
e sons que ainda não se entende
a poesia, um parto normal
de contrações e sangue
parindo
antes da prole
a mim mesma como potência de outras vidas
Em O que há de autêntico em uma mãe inventada (Urutau, 2022), livro de estreia da paulistana Oluwa Seyi, a maternagem – desde “colo vazio”, “fecundação”, “ventre”, “partejo” e “rebento”, que é como se dividem as seções – alude ao gesto da escrita. Logo, a mãe inventada do título é uma mulher que escreve, criando rebentos-poemas no espaço literário, lugar onde pode, além de ser quem é, ser o que inventa.
Se ser uma mulher negra quando as pessoas de sua cor são “oprimíveis”, “violáveis” e “matáveis” é, por um lado, uma experiência de terror que não nos deixa esquecer um só instante que “meu país mata por capricho/ criança que ousa nascer preta”, por outro, abriga a tradição africana e afro-diaspórica do “maternar-aldeia” – processo de apoio entre mulheres no cuidado de crianças e de si mesmas. Há um provérbio africano que diz que “é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”, e ser uma mulher preta é partilhar – ser a criança e a aldeia toda.
Fernanda Silva e Sousa comenta esse aspecto da maternagem negra na orelha do livro, também lembrando Toni Morrison quando diz que “o lugar da mãe para as mulheres negras nunca significou meramente opressão, pois era um lugar em que projetos de liberdade podiam ser gestados, sonhados e levados a cabo”, envolvendo ainda as “propriedades ancestrais que herdaram”, ou seja, uma capacidade de cuidar não só das crias, mas também de si.
E é justamente por ser uma mulher preta que a invenção de Oluwa não nasce do nada: “minhas primeiras palavras não foram as primeiras/ meus primeiros passos foram a repetição de outros/ muito anteriores// minha idade aparente persegue minha antiguidade escondida”. Inventar aqui equivale a se conectar e recriar com sua herança cultural, porque não é o racismo que “torna” as pessoas negras, mesmo porque:
apavora-me a ideia de nada mais que polpa da fruta
— colorida, doce e bonita —
mas resumida a proteger a posteridade
atrair aves, em sua ambiguidade
nutrir, parir a semente
e morrer podre em nome de um velho ciclo
somente
A invenção consiste na “melanina universal” em que reside o principal fundamento do pensamento africano e afro-diaspórico: se perceber e se sentir como um fruto da ancestralidade – no corpo, no espírito, em cada gesto, na sabedoria e partilha das experiências e invenções que trazemos do e para o coração, num reconhecimento de si e das demais pessoas. Ao recriar essa sabedoria em sua poesia, Oluwa revela um pouco do que “guarda a cabaça das Iabás”: a questão da maternidade transcende as relações de gênero e sangue; a questão da raça transcende tempo e espaço.
E, assim como na maternagem, é na poesia, essa meditação profunda na linguagem, que a poeta cria seu “lugar de sonhar, gestar e levar projetos a cabo”, onde religa o que é ao que será, e inventa um
devir
a mais bela canção de amor já feita
ainda é apenas sonho e murmúrio
o poema incontornável de resistência
brotará, quando de pronto, de um ferido casulo
a certeza, em coro, de que tudo se ajeitará
talvez tarde, mas confio que chegue:
minha prova de perdão à humanidade
(se meu peito um dia for capaz de tanto)
terá carne, osso, pele preta e nosso sangue em um só.
Nina Rizzi é escritora, tradutora, pesquisadora e professora. É autora de livros como tambores pra n’zinga, sereia no copo d’água e o infantil A melhor mãe do mundo. Formada em História pela Unesp e mestra em Literatura Comparada pela UFC, traduziu, entre outras obras, livros de Alejandra Pizarnik, Susana Thénon, bell hooks, Alice Walker, Toni Cade Bambara, Ijeoma Oluo e Abi Daré.