A poesia dúctil de Diane di Prima
Por Nina Rizzi
13 de agosto de 2023
Primeira obra poética de Diane di Prima lançada no Brasil (em 2013 saiu pela Veneta Memórias de uma beatnik, romance erótico-autobiográfico traduzido por Ludimila Hashimoto), Poemas mais ou menos de amor & outros poemas (Jabuticaba, 2022) é uma bela seleção do que a poeta escreveu em diversos momentos de sua prolífica produção literária – ela chegou a publicar em vida mais de quarenta livros, a maioria de forma independente.
Além de poeta, Diane di Prima (1934-2020) foi dramaturga, professora e ativista pelos direitos civis. Feminista, defendia o aborto, casou-se e divorciou-se duas vezes, teve cinco filhos e foi presa por lançar obras consideradas obscenas.
Geralmente associada à chamada geração beat, Di Prima foi leitora e amiga de vários expoentes desse grupo, tendo inclusive publicado muitos deles na revista The Floating Bear, que editava junto com Amiri Baraka, com quem teve uma filha.
Sobre o termo “beat”, vale citar o comentário de James Baldwin no artigo “If Black English Isn’t a Language, Then Tell Me, What is it?”, que saiu no New York Times em 29 de julho de 1979, em que discute sobre o Black English, uma linguagem própria da comunidade negra dos EUA: “Beat to his socks [expressão], que um dia foi a mais total e desesperadora imagem de pobreza dos negros, foi transformada numa coisa chamada Beat Generation…”. Sim, porque Jack Kerouac se apropriou dela alterando seu significado para “otimista”, associando-a assim ao caráter musical de estar “no ritmo” (“on the beat”).
Ao ler os poemas de Di Prima, percebemos, contudo, uma grande diferença entre ela e seus colegas “beats”, marcada sobretudo por ela ser uma mulher. Grande parte desses escritores – como Lawrence Ferlinghetti, Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Neal Cassady e William Burroughs – eram rapazes bem alimentados da classe média branca, não tinham trabalho fixo e praticavam atividades ilícitas como roubo e tráfico de drogas. Enquanto suas preocupações eram sobretudo desfrutar de experiências psicodélicas em parcerias fraternas (envolvendo sexo ou não), os interesses de Di Prima estavam no senso de coletividade, nas questões de raça, gênero e classe, por exemplo em:
CARTA REVOLUCIONÁRIA #2
O valor da vida individual um lema ensinado
para nos incutir medo, e inação, “você só vive uma vez”
névoa em nossos olhos, nós somos
infinitos feito o mar, inseparáveis, morreremos
um milhão de vezes ao dia, nascemos
um milhão de vezes, vida e morte a cada sopro:
levante-se, calce os sapatos,
comece, alguém vai terminar
Tribo
um organismo, uma carne, soprando alegria como as estrelas
sopram em nós o destino
continue, dê as mãos, se encarregue do negócio, milhares de filhos
cuidarão disso quando você cair, você crescerá
milhares de vezes no ventre de suas irmãs
A seleção é de poemas escritos em diversos períodos da vida de Di Prima e tematizam espiritualidade e resistência política, maternidade, política. Já o amor a que alude o título do livro é cantado na coleção de quinze poemas que abrem o volume e que falam de um amor mais amplo que o focado em relações afetivo-sexuais, como as amizades e a família, temas recorrentes em toda a obra.
Se a variedade temática se mantém, estilisticamente os poemas são ora frontais e breves, sobretudo quando falam de amor, ora mais longos e profusos, principalmente ao tratar de resistência política e família. E, embora a linguagem muitas vezes seja eloquente como num discurso carregado de aliterações, soando musical e não enfadonha, é como se estivéssemos de frente para a poeta, com um copo de bebida quente nas mãos, ouvindo com uma intimidade crescente o que as palavras têm a dizer, porque precisam dizer, e então parecem brotar das páginas.
A tradução de Fernanda Morse, que também se encarregou da organização do volume, foi muito feliz ao recriar esses efeitos com a matéria que temos em língua portuguesa: um transbordamento de palavras e uma infinidade de modos que criam uma cadência única a partir de expressões, contrações cotidianas e aspectos formais próprios da poesia, como o enjambement (a quebra de versos), além de outros efeitos verborrágicos, tanto nos mais longos, como “Viajando de novo”, “Ode à elegância”, “Para o conferencista morto” e este “Caminho estreito para campo”, dedicado à sua amiga Audre Lorde:
Você está voando para Daomé, voltando
pralgum sonho, ou pra terra do nunca-nunca
mais proibida & perfeita
que Oz. Vai aterrissar num aeroporto do Oeste
barulhento, pequeno e fuleiro, vai procurar
por Oxum, enquanto ela permanece
esperando a bagagem. Bem, nós levamos
o paraíso da terra pura por dentro, você o leva
para Daomé […]
Como também nos poemas curtos:
você não chega a ser
o ar que eu respiro
graças a deus
então vaza
Morse ainda escreve um belo texto de apresentação, contextualizando a vasta produção de Diane di Prima como poeta e editora, e apontando como essas duas atividades, mesmo que imbricadas, tiveram diferentes públicos: “é curioso notar como Di Prima por vezes era a única mulher a figurar nesse meio e nessas publicações. Logo, ao atuar como editora de revista, exercia um poder que não era difundido entre escritoras e artistas no cenário da época. Ao mesmo tempo, tal articulação não se convertia em um proporcional reconhecimento do seu trabalho enquanto escritora”.
Em seu livro de memórias, Recollections of My Life as a Woman, como também em seus poemas, a própria poeta discutiu a questão de gênero e o fato de não ter tido tanta repercussão quanto seus companheiros de geração, revelando mais uma vez o caráter crítico de sua poesia, até no uso de um trecho de um poema de outro poeta da geração beat como epígrafe:
A PRÁTICA DA EVOCAÇÃO MÁGICA
A fêmea é fértil, e a disciplina
(contra naturam) só
a confunde
– Gary Snider
sou uma mulher e meus poemas
são de mulher: fácil falar
assim. a fêmea é dúctil
e
(golpe após golpe)
criada para uma calma
masoquista. O nervo amortecido
faz parte dela:
sexo acordado, retina morta
olhos de peixe; na raiz do cabelo
abalo mínimo
e a arquitetura funcional pélvica
por dentro & por fora atacada
(dá à luz) a boceta se alarga
e meio molhada
só dá à luz filhos homens
a fêmea
é
dúctil
mulher, um véu pelo qual a Vontade dedada é
duas vezes rasgada
duas vezes rasgada
por dentro & por fora
o fluxo
qual ritmo dar à inércia
qual elogio?
Com vários poetas homens da geração beat sendo traduzidos, lançados e estudados por aqui há bastante tempo, é de se celebrar que finalmente tenhamos um livro de poemas de Diane di Prima publicado. Que seja uma porta aberta para que possamos conhecer e ver circular mais mulheres poetas incríveis, como Denise Levertov, Elise Cowen, Hettie Jones e Joyce Johnson, e poetas de que nem ouvimos falar ainda, negras, indígenas e queers, pertencentes a essa geração que não é apenas de homens brancos.
Nina Rizzi é escritora, tradutora, pesquisadora e professora. É autora de livros como tambores pra n’zinga, sereia no copo d’água e o infantil A melhor mãe do mundo. Formada em História pela Unesp e mestra em Literatura Comparada pela UFC, traduziu, entre outras obras, livros de Alejandra Pizarnik, Susana Thénon, bell hooks, Alice Walker, Toni Cade Bambara, Ijeoma Oluo e Abi Daré.