Quero ser André Sant’Anna
Por Gustavo Pacheco
27 de outubro de 2023
Muitos anos atrás, um amigo me recomendou um filme com o estranho título de Quero ser John Malkovich. Na verdade, o título é a coisa menos estranha do filme, como sabem todos que assistiram a ele. Lembro que saí do cinema e, ainda remoendo o roteiro bizarro e engraçadíssimo de Charlie Kaufman, pensei: será que tem alguém fazendo algo parecido na literatura? Eu ainda não conhecia André Sant’Anna.
Num velho clichê do mundo literário, um crítico diz sobre um livro: tem partes boas e originais, só que as partes boas não são originais e as partes originais não são boas. Pois em vinte e cinco anos de carreira e sete livros publicados, André Sant’Anna conseguiu a dificílima proeza de ser, como Charlie Kaufman, muito bom e muito original (além de muito engraçado). Seu estilo é marcado por uma repetição compulsiva e hipnótica de ideias e expressões, às vezes bordões e lugares-comuns retirados da fala das ruas, da publicidade e da cultura de massas, às vezes obsessões pessoais que reaparecem em vários de seus textos, tudo isso temperado com doses generosas de ironia, dadaísmo, exclamações e palavrões. É difícil descrever, melhor é transcrever:
“Deus tudo vê. Deus tudo sabe. Não é possível enganar Deus. Deus mora na sua alma mais profunda e está vendo muito bem a depravação que se passa na sua mente. Ele sabe muito bem que, por detrás dessa sua pose boazinha de crente, tu, no fundo, quer mesmo é brincar com o aparelho excretor! Quer mesmo é se levantar daqui agora, sair desta casa abençoada de Deus e ir para casa fazer sexo! Sexo anal! É ou não é, mané? E sabe o que Deus pensa de verdade sobre homens que fazem sexo com homens do mesmo sexo, sobre mulher que bota aranha pra brigar? Nada! Sim! Não! Sim! Absolutamente nada!”
Esse é um trecho de Discurso sobre a metástase (Todavia, 2021), seu livro mais recente, lançado em plena hecatombe brasileira. André Sant’Anna parece não só o escritor mais apto a narrar essa hecatombe, mas também o mais profético; é difícil reler seus livros anteriores, como Sexo e amizade (Companhia das Letras, 2007) ou O Brasil é bom (Companhia das Letras, 2014), e não sentir que ele já descrevia com muita precisão tudo o que viria depois – ou melhor, tudo que já estava aí desde sempre, encoberto apenas por uma fina camada de verniz civilizatório, que se mostrou bem mais precário do que gostaríamos.
Discurso sobre a metástase reúne dezoito escritos muito diferentes entre si e ao mesmo tempo muito característicos do estilo personalíssimo de André Sant’Anna, com títulos como “A Alemanha é muito melhor que o Brasil”, “Um natal para aquecer nossa economia!” e “Ela vai morrer no final”. Há desde prosas de apenas um parágrafo até uma peça de teatro de quase cinquenta páginas; em alguns textos o narrador parece que tomou LSD, em outros parece que o país inteiro é que tomou LSD e só o narrador permaneceu lúcido. Ao escrever a última frase, sem querer digitei “lúdico”; não deve ser por acaso, pois a sagacidade e a brincadeira caminham juntas neste livro.
Quero ser André Sant’Anna, mas infelizmente não sou. Se eu fosse, escreveria assim: “Um dia, no Éden, quando eu ainda não me importava demais com coisa nenhuma e me comportava feito um animalzinho tolo e animado, Deus apareceu no Céu ditando um monte de ordens. Eu achei engraçada aquela autoridade toda dele. Foi por isso que eu sorri para o Criador. Juro que foi um sorriso inocente. Mas Deus é muito sério e achou que era deboche. Ele ficou nervosinho e resolveu me dar o troco. Ganhei um espírito e vou sofrer eternamente. No Inferno.”
Gustavo Pacheco é escritor, tradutor e codiretor da revista Granta em língua portuguesa. Seu livro de contos Alguns humanos (2018) ganhou o prêmio Clarice Lispector da Fundação Biblioteca Nacional. Traduziu para o português obras de Roberto Arlt, César Vallejo, Julio Ramón Ribeyro e Patricio Pron.