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É melhor não caçar sozinho

Por Gustavo Pacheco

12 de março de 2023
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Jamain, além de bom caçador e ótimo contador de histórias, é dessas pessoas que perdem o amigo mas não perdem a piada. Quem o conhece fica logo cativado pelo seu jeito divertido e espirituoso, apesar de seus hábitos esquisitos. Ele nunca mais foi o mesmo depois que saiu um dia para caçar antas, ficou meses desaparecido e voltou contando mais uma de suas histórias que a gente não sabe se acredita ou não. Começou a trocar palavras, a comer coisas estranhas e a se comportar bizarramente. Esse novo Jamain tem algumas semelhanças inquietantes com as antas que foi caçar, a ponto de a própria família ficar em dúvida se ele é mesmo Jamain.

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Jamain, protagonista do conto “O Garrincha da floresta”, é um dos personagens mais insólitos e fascinantes de Ficções amazônicas, livro em que não faltam personagens insólitos e fascinantes, e que apresenta virtudes que o destacam no panorama da ficção brasileira recente. Em primeiro lugar, que alegria poder ler histórias da Amazônia (ou melhor, das Amazônias), território tão pouco explorado pela literatura brasileira contemporânea, com algumas notáveis exceções (leiam Edyr Augusto e Joca Terron!). Jamain vive numa pequena aldeia em Rondônia, perto da fronteira com a Bolívia; outras histórias do livro se passam em lugares como Lábrea, cidade a mais de 800 quilômetros de Manaus, ou uma vila sem nome à beira do rio Juruá, que banha os estados do Acre e do Amazonas, ou outras aldeias perto dos rios Vaupés, Mearim e Catrimani. Nomes que soam distantes e exóticos para muitos, talvez a maioria dos brasileiros, e continuarão soando enquanto o Brasil seguir virando as costas para si mesmo. Ficções amazônicas, escrito pela antropóloga Aparecida Vilaça e pelo químico Francisco Vilaça Gaspar, vai na contramão dessa tendência, abrindo várias picadas em terra nova.

O leitor que topar esse mergulho nas Amazônias não vai encontrar apenas indígenas carismáticos, mas também biólogos colombianos, antropólogos poloneses, militares venezuelanos, hipsters paulistanos – e essa é mais uma virtude do livro: todas as histórias envolvem o cruzamento de fronteiras geográficas, temporais e socioculturais, formando um mosaico vertiginoso e imprevisível (e também engraçado, pois o livro não foge do humor). Os melhores contos, como “O Garrincha da floresta”, são aqueles que vão mais longe nesse cruzamento de fronteiras, chegando até a comunicação interespécies com antas, araras e outros bichos. Ficções amazônicas tem, entre outros méritos, o de trazer para o campo da ficção ideias e comportamentos associados ao perspectivismo ameríndio, modelo teórico formulado pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro em parceria com alguns de seus alunos (entre os quais a própria Aparecida Vilaça).

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Outra virtude do livro, talvez menos óbvia, mas nem por isso menos relevante, é sua linguagem clara e direta. É muito tentador concluir que o pensamento e a vida dos ameríndios, por sua alteridade radical, exijam uma linguagem radicalmente nova ao serem imaginadas em forma de prosa; no entanto, as coisas não são tão simples. Na prática, isso pode resultar em prosa poética de qualidade duvidosa, que quer ser exuberante e expressiva mas acaba sendo apenas imprecisa e afetada (especialmente se quem escreve não se chama Guimarães Rosa). Por outro lado, é perfeitamente possível representar visões de mundo bem distantes da experiência ocidental sem cair na tentação de encher o texto de neologismos, onomatopeias e construções verbais diferentonas – como provam dois dos maiores pensadores indígenas do Brasil contemporâneo, Ailton Krenak e Davi Kopenawa, cuja linguagem é igualmente clara e direta.

Além de tudo isso, Ficções amazônicas é também um bem-sucedido exemplar de uma espécie rara, o livro de ficção escrito a quatro mãos. Talvez porque, como diz um dos personagens do livro, é melhor não caçar sozinho. Arrisca de onça ou de anta levarem a gente para viver com elas.

© Maria Mazzillo

Gustavo Pacheco é escritor, tradutor e codiretor da  revista Granta em língua portuguesa. Seu livro de contos Alguns humanos (2018) ganhou o prêmio Clarice Lispector da Fundação Biblioteca Nacional. Traduziu para o português obras de Roberto Arlt, César Vallejo, Julio Ramón Ribeyro e Patricio Pron.

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