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Um convite à (re)conexão com a natureza

Por Flavia Natércia

2 de abril de 2023
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O biólogo Marcos Rodrigues, professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), escreveu Ypabuçu: a vida nas lagoas, para “mostrar que a natureza e as relações dela conosco estão bem à nossa frente e podem (talvez devam) ser contempladas frequentemente”, ou seja, para “religar o leitor à natureza”. Conforme conta no prólogo do livro, há cerca de 20 anos ele vive em Lagoa Santa, cidade que fica 30 quilômetros ao norte de Belo Horizonte. E, ao longo das caminhadas que realiza desde então em torno da lagoa que dá nome à cidade, Rodrigues pôde perceber a vida selvagem que fervilha no ambiente urbano e não é notada pela maioria dos transeuntes que passam por ela apressados, muitas vezes com fones nos ouvidos ou vidrados em seus telefones. As lagoas, sejam elas naturais, sejam criadas pelos seres humanos com a barragem de um córrego, um ribeirão ou um rio, são locais privilegiados para a contemplação da vida em suas mais diversas manifestações.

Rodrigues nos convida a aproveitar o silêncio interior proporcionado por caminhadas em ambientes como esse para atentar aos sons, às cores, aos aromas e às sensações que brotam da paisagem, tornando cada dia diferente do outro e criando oportunidades para descobertas: o piado rouco dos sabiás, o assobio dos sanhaços, os duetos dos joões-de-barro, “o canto destrambelhado do japu”, a caça de peixes pelos martins-pescadores, pelas garças, pelos biguás e pela águia-pescadora, as tonalidades de verde da vegetação, os tons de azul do céu, o movimento dos ventos e das nuvens, o brotamento das folhas novas, a floração das paineiras, dos guapuruvus, dos ipês, dos mulungus, das amarílis do brejo e das ervas daninhas, o cheiro dos jasmineiros, a agitação das libélulas e dos efemerópteros. Todos fenômenos que podem parecer desconectados de nossa vida somente se desconsideramos a unidade da natureza.

O livro se divide em 13 capítulos, ao longo dos quais acompanhamos as perambulações de Rodrigues desde o final da estação chuvosa, quando a lagoa fica cheia e pode transbordar, atravessando o inverno e os meses de seca, quando ela míngua, até o retorno à época das chuvas e a chegada do outono, de março de um ano a março do ano seguinte. Os capítulos são interligados, mas podem ser lidos arbitrariamente. A partir das observações feitas durante suas caminhadas e das anotações registradas em seu diário, o autor criou crônicas científicas que nos conectam com a sucessão das estações, os organismos que se encontram na lagoa Santa e em outras lagoas, lagos e lagunas do mundo, como a lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte, a lagoa da Conceição, em Florianópolis, os lagos amazônicos, o lago Vitória, no Quênia, o lago Titicaca, nos Andes, e os grandes lagos da América do Norte, e as relações ecológicas que se estabelecem entre esses organismos e seus ambientes. Rodrigues também aproveita para chamar nossa atenção para seres que não conseguimos ver, como algas e microcrustáceos, fundamentais para a teia da vida, e para aqueles que tememos ou desprezamos, como os pernilongos e os caramujos.

Os textos trazem observações de viajantes e naturalistas do passado, como o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), o explorador britânico Richard Francis Burton (1821-1890), o zoólogo dinamarquês Johannes Theodor Reinhardt (1816-1882), o botânico dinamarquês Eugene Warming (1841-1924), autor do livro Lagoa Santa, e o imperador Dom Pedro II. Também mencionam observações e estudos de cientistas do presente, como os biólogos Ludmila Silva Brighenti, Cleber Figueiredo, Alessandra Giani, Giulia D’Angelo e Ivan Sazima. E o passado dialoga com o presente, levando muitas vezes à constatação de degradações ambientais provocadas por atividades humanas.

Com Marcos Rodrigues ainda revisitamos diversos fatos históricos e até um relato mítico: a história da própria lagoa Santa e as pinturas rupestres feitas por paleoindígenas, a invenção da agricultura, a pesca de tilápias no lago de Genesaré (mar da Galileia) pelos apóstolos de Jesus Cristo, a exploração do Novo Mundo pelos europeus e a busca do El Dorado rico em pedras e metais preciosos, a procura da nascente do rio Nilo e a história do lago Vitória, a Guerra do Pacífico que opôs chilenos a bolivianos. Além disso, o autor cita diversas poesias e canções evocadas pela paisagem ou pelos fenômenos observados ou relatados, trazendo para o texto, em um exercício de sensibilidade e apelo à emoção dos leitores, Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa), João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Clarice Lispector, Cecília Meireles, Dante Alighieri, Rabindranath Tagore, Dorival Caymmi, Caetano Veloso e Tom Jobim, entre outros.

Por outro lado, o autor trata de problemas ecológicos causados pela intervenção humana com efeitos catastróficos no meio ambiente, como o despejo de esgoto doméstico e industrial, a queima de combustíveis fósseis, a construção de canais ligando rios, a introdução acidental ou proposital de espécies invasoras e o uso maciço do inseticida DDT (diclorodifeniltricloroetano). E a conscientização sobre esses efeitos é mais que urgente, pois diz respeito ao presente e ao futuro do planeta. Como Marcovaldo, personagem do escritor italiano Italo Calvino, podemos atentar às manifestações da natureza e à mudança das estações, mesmo vivendo em uma cidade. 

Cada um pode encontrar sua própria Ypabuçu (“lagoa grande”, na língua tupi), que “nunca é a mesma”, e por meio da conexão com ela mudar de atitude quanto aos fenômenos naturais, a serem não somente apreciados como também preservados.

© Ricardo Lima

Flavia Natércia (1973-2023) era jornalista especializada na cobertura de ciências e tecnologia, e divulgadora científica. Formada em Ciências Biológicas e mestre em Ecologia pela Unicamp e doutora em Processos Comunicacionais pela Umesp, fez especialização em Jornalismo Científico e pós-doutorado em Percepção Pública da Ciência e Divulgação Científica no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp. Também era formada em Letras (Português/Italiano) pela UFRJ.

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