Um abecedário de questões insólitas
Por Flavia Natércia
5 de março de 2023
Em O que diriam os animais? (2021), Vinciane Despret, formada em filosofia e psicologia clínica e experimental, professora do Departamento de Filosofia da Universidade de Liège, na Bélgica, trata de estudos de etologistas, primatólogos e psicólogos experimentais sobre o comportamento dos animais, maneiras como se estabelecem laços entre seres humanos e animais e o fazer científico. O livro, organizado em formato de abecedário, com verbetes que vão de “A de Artistas – Bichos pintores?” a “Z de Zoofilia – Os cavalos deveriam consentir?”, pode ser lido na ordem que se desejar, seguindo os próprios interesses, ou se guiando pelas remissões da autora.
Cada um dos 26 verbetes propõe uma pergunta que provoca reflexão, food for thought. No prefácio, o antropólogo, sociólogo e filósofo da ciência Bruno Latour — um dos autores que inspiram a abordagem de Despret e com o qual sua obra dialoga — afirma que se trata de “fábulas científicas” escritas com humor e que poderiam se chamar “A elefanta e o espelho”, “O porco que tentou mentir” ou “O papagaio que se recusa a papaguear”. Para problematizar os resultados obtidos e as interpretações dadas por cientistas e o próprio fazer científico, Despret se baseia na literatura dessas áreas do conhecimento e em observações in loco dos cientistas em atuação no campo. Segundo a própria autora, ela não o faz para denunciar nem criticar falhas, e sim para multiplicar os pontos de vista, introduzindo narrativas alternativas.
Além disso, Despret utiliza conceitos e reflexões de pesquisadores e autores de outras áreas e outros campos do saber, como a filósofa da ciência Isabelle Stengers, a zoóloga e filósofa Donna Haraway, a socióloga especialista em animais de produção Jocelyne Porcher e o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, entre outros, para “fazer hesitar” quanto às explicações estabelecidas, deixando a quem lê a tarefa de chegar às respostas.
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Com exemplos relativos a animais distintos – como lobos, babuínos, chimpanzés, diversas espécies de macacos, cabras e papagaios –, Despret mostra que muitas vezes não lhes são feitas as perguntas certas. E, ainda assim, espera-se que eles respondam, e, mais que isso, respondam da forma esperada, e não de um modo surpreendente nem por “razões erradas” – aquelas que não se prestam à experimentação. Por exemplo, os pesquisadores que testavam teorias da aprendizagem por condicionamento perceberam que os ratos de laboratório “trapaceavam”: no lugar de memorizar corredores com recompensas e trajetos sem saída, eles os marcavam com odores indicando os caminhos a ser seguidos ou não, resolvendo à sua maneira o problema colocado. Desse modo, as observações e os experimentos podem não interessar aos animais simplesmente por não levarem em consideração seus Umwelten: suas maneiras de perceber o mundo ao redor, que por sua vez condicionam suas formas de interagir com ele.
Nossa forma de ver o mundo pode ser tão diferente das deles que é preciso imaginação e criatividade para constatar, por exemplo, sua inteligência ou seu senso de justiça, sua capacidade de mentir ou de se comunicar. Não por acaso o primatólogo Frans de Waal publicou um livro intitulado Somos inteligentes o bastante para saber quão inteligentes são os animais? (2021). Como Despret conta na conferência com o título do livro, um carneiro que ergue a cabeça e parece estar captando odores no ar na verdade pode estar indicando a seu grupo uma direção a ser seguida. Para chegar a essa conclusão, um cientista deve lançar mão de “tato e atenção”, criando elos entre eventos aparentemente desconectados como esse gesto e o deslocamento que algum tempo depois se segue a ele.
Despret também trata da forma como nos relacionamos cotidianamente com os animais. No verbete “K de Kg – Existem espécies matáveis?”, por exemplo, ela parte de como aferimos a morte de animais de produção: em quilos e toneladas. Não tratamos assim as mortes de humanos: “Mortos, humanos são corpos, despojos; os animais são carcaças – ou cadáveres, quando não são destinados ao consumo”. Para que essa separação ontológica se sustente, é preciso “apagar tudo o que poderia lembrar o animal vivo” e toda a violência envolvida no processo de sua transformação em produtos: somente assim podemos encará-lo como pedaços ou “cortes” de carne disponíveis para o consumo. A reação das pessoas à pegadinha “Moedor de porco – câmeras escondidas” evidencia tal necessidade.
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Com seu abecedário de perguntas, Despret nos leva a repensar muitos fatos cotidianos e científicos nos quais nosso mundo se enlaça com os dos animais, em laboratórios, parques temáticos, zoológicos, em casa, nas ruas, em açougues e supermercados. Seu livro (cf. os verbetes em que trata do luto, da homossexualidade e da zoofilia, por exemplo) tem o condão de deslocar e renovar nosso olhar em relação a eles e também em relação a nós mesmos: não somos tão excepcionais quanto estamos habituados a nos considerar.
Flavia Natércia (1973-2023) era jornalista especializada na cobertura de ciências e tecnologia, e divulgadora científica. Formada em Ciências Biológicas e mestre em Ecologia pela Unicamp e doutora em Processos Comunicacionais pela Umesp, fez especialização em Jornalismo Científico e pós-doutorado em Percepção Pública da Ciência e Divulgação Científica no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp. Também era formada em Letras (Português/Italiano) pela UFRJ.