Por uma consciência planetária altruísta e amorosa
Por Flavia Natércia
30 de abril de 2023
Em Sonho manifesto: dez exercícios urgentes de otimismo apocalíptico (Companhia das Letras, 2022), Sidarta Ribeiro, professor titular de Neurociência e fundador do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), une o conhecimento científico aos saberes tradicionais e ancestrais para tratar da situação paradoxal em que se encontra a humanidade. Por um lado, estamos à beira de um abismo cavado por nós mesmos: podemos destruir o planeta, continuar predando recursos e vidas, obedecendo e adorando ao “deus dinheiro” e condenando ao sofrimento milhões de seres vivos. Por outro, nunca tivemos disponíveis tanto conhecimento e tanta sabedoria. Assim, podemos optar por nos iluminar, fazendo prevalecer a ética do cuidado, atentando à qualidade do sono e dos sonhos, ouvindo o que têm a dizer nossos mais velhos e nossos mais novos, e usando toda a tecnologia à nossa disposição para promover o bem-estar geral. Podemos “compreender o pesadelo que habitamos” e frear a “máquina do fim do mundo”.
Segundo Sidarta, a pandemia de Covid-19 é emblemática da crise que vivemos. Essa situação se arrasta, ceifando muitas vidas que poderiam ser poupadas, em grande medida porque houve desigualdade na distribuição de recursos para enfrentá-la. Países mais ricos não tardaram a receber as vacinas que foram criadas contra o novo coronavírus e puderam até criar estoques para vários ciclos de imunização, ao passo que os países, as regiões e as classes mais desfavorecidas penaram para ter acesso a esse método de prevenção.
Enquanto isso, durante os dois primeiros anos de pandemia, dez bilionários conseguiram dobrar sua riqueza material, e a riqueza dos 2.400 bilionários do mundo foi de 8 trilhões de dólares para 12,4 trilhões de dólares — um aumento de 54%. Caso eles fossem capazes de sentir empatia e não estivessem tão empenhados em predar, competir e ganhar sempre mais, o contágio do Sars-Cov-2 poderia ter sido contido de forma mais eficiente pelo globo, contribuindo para não se criarem oportunidades para o surgimento de variantes mais letais. Novas pandemias nos aguardam no futuro — como reagiremos a elas?
O autor apresenta dados alarmantes. O número de suicídios no mundo supera o de homicídios, por exemplo: de acordo com o site Our World in Data, em 2019 houve 703.323 suicídios e 415.180 homicídios no mundo. Além disso, 800 milhões de pessoas passam fome e estima-se que a cada minuto onze morrem por esse motivo, mesmo que a produção de alimentos seja suficiente para alimentar todos os seres humanos do planeta. Além disso, a desigualdade entre ricos e pobres tem aumentado cada vez mais rápido nas últimas décadas. Também existem 800 milhões de analfabetos. E mais da metade das 7 mil línguas faladas deve se extinguir até o ano 2100, o que provoca uma perda irreparável no manejo de plantas medicinais, por exemplo, que muitas vezes só é conhecido pelos falantes de uma determinada língua.
Muitos de nós padecemos de sedentarismo, sono insuficiente ou insônia, sonhos fragmentários ou pesadelos, uma “bruta desconexão com o próprio corpo e a própria mente”, fonte de “prejuízos cognitivos e disfunções emocionais”. Não nos dedicamos à introspecção nem à “construção do prazer e da paz interior”. Estamos tristes, estamos ansiosos, estamos enfermos. “Nossa ancestralidade está intoxicada e doente de patriarcado há milênios — e a situação vem piorando. Se formos seguir fielmente nossas tradições mais sólidas, estamos fritos”, alerta Sidarta.
“A persistência transgeracional de comportamentos destrutivos é compreensível, pois somos o resultado de milhões de anos de exclusão, violência e desrespeito a tudo que não é identificado como ‘eu’ ou ‘nós’”, afirma o autor. Em compensação, somos também frutos de um longo percurso de cooperação e temos de valorizá-lo se quisermos continuar evoluindo. Nossa ancestralidade também é amorosa e altruísta, do contrário não teríamos nos estabelecido nos quatro cantos do planeta há milhares de anos.
Por isso, podemos estabelecer um mínimo denominador comum e “firmar um acordo sobre o que é inaceitável”. Podemos buscar mais serotonina, neurotransmissor associado à felicidade e ao êxtase, e menos dopamina, associado à recompensa e ao vício. “Será preciso muita sabedoria coletiva para retomar o sonho do bem comum e construir de forma adequada o futuro da espécie”, diz Sidarta. Para isso, contamos com um prodigioso “tesouro multicultural”, no qual se encontram diversas religiões, diversas tradições, diversos saberes. Contamos, por exemplo, com as ciências e as tecnologias, as histórias narradas pelos griôs ou djélis, todo o conhecimento de centenas de povos indígenas, os ensinamentos básicos de amor, respeito e tolerância do hinduísmo, do budismo e do cristianismo, o Chi Kung, o sexo tântrico, a sabedoria dos mestres de capoeira, as práticas de ioga e meditação, as substâncias enteógenas e psicodélicas administradas em settings terapêuticos ou ritualísticos, a possibilidade de revolucionar os métodos de ensino e a literatura ficcional que nos põe diante de futuros possíveis. Com tudo isso, podemos reverter o balanço entre prazer e dor e reduzir a desigualdade.
Sidarta nos convida a construir uma sociedade unida na busca do bem-estar geral, sem ceticismo, cinismo ou desânimo, desenvolvendo “uma consciência amorosa e planetária”. Ele cita Angela Davis para nos conclamar a agir sempre, diariamente, como se pudéssemos transformar o mundo e, dessa forma, contribuir para que ele de fato mude. Esse é o caminho para recuar da beira do abismo.
Flavia Natércia (1973-2023) era jornalista especializada na cobertura de ciências e tecnologia, e divulgadora científica. Formada em Ciências Biológicas e mestre em Ecologia pela Unicamp e doutora em Processos Comunicacionais pela Umesp, fez especialização em Jornalismo Científico e pós-doutorado em Percepção Pública da Ciência e Divulgação Científica no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp. Também era formada em Letras (Português/Italiano) pela UFRJ.