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Fincar os pés na Terra para construir um novo presente

Por Flavia Natércia

23 de julho de 2023
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Professora titular do Instituto de Matemática da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e atual secretária de Ciência e Tecnologia da capital fluminense, Tatiana Roque é autora de O dia em que voltamos de Marte: uma história da ciência e do poder com pistas para um novo presente (Planeta, 2021). Ao tratar do que considera “momentos emblemáticos” da história da ciência nos últimos trezentos anos, ela aborda as formas como a ciência se aliou à política ao longo desse período. Foi um casamento que rendeu muitos frutos, como as descobertas e as invenções que melhoraram nosso cotidiano, mas também resultou no desenvolvimento de armas de destruição em massa.

A ciência e a tecnologia foram o motor da “grande aceleração”, o incremento das atividades econômicas ocorrido no pós-guerra, que se correlaciona com o grande aumento da concentração de dióxido de carbono na atmosfera, do volume de desmatamento e da perda de biodiversidade que caracterizam o Antropoceno. Por isso, o objetivo da autora consiste em “despertar a sensibilidade histórica para o momento em que vivemos, que é excepcional e sem precedentes”. Nele, os pactos entre a ciência e a política que fizeram o mundo funcionar até aqui perderam credibilidade e força e precisam ser reformulados para enfrentarmos os desafios do presente e do futuro da humanidade.

Como Roque afirma na introdução, o livro nos leva a uma viagem pela história que começa no Iluminismo, a assim chamada “época da razão”, quando “o conhecimento letrado era praticado em ambientes mundanos e a ciência invadia cafés, salões e saraus literários. Foi então que as ciências exatas passaram a ser valorizadas e as promessas da técnica sustentaram a aposta de que o futuro avançaria sempre para melhor”. Nesse período, o método analítico e a álgebra transformaram a compreensão dos fenômenos, inclusive os políticos e sociais, fazendo emergir uma visão determinista e tornando desnecessário invocar a intervenção divina para explicá-los. Ademais, o saber público se aproximou cada vez mais do conhecimento científico, embora “a paixão pela verdade” fosse “mais importante do que a verdade em si”.

Com a redução do analfabetismo, expandiu-se o hábito da leitura para além das elites, com a proliferação de publicações nos mais diversos formatos, como panfletos, brochuras e livros de divulgação e de viagem. E formou-se uma opinião pública que se transformou no “próprio motivo dos novos saberes, que se tornavam mais vastos e demandavam definições mais precisas”. A autora destaca ainda que foi no final do século XVIII que começou a profissionalização dos cientistas, primeiramente na França, depois na Alemanha, o que se mostraria crucial para as mudanças que ocorreram nos séculos seguintes.

Em seguida ela analisa o século XIX, quando as ciências passaram a ter impacto direto nas inovações, como o telégrafo, que alimentaram o ideal de progresso, “estimulado por instituições portentosas e populares” e fundamental para a expansão da industrialização, do comércio, do capitalismo e do imperialismo europeu. Nesse período, tornou-se muito importante a formação de um público capaz de compreender e admirar os feitos científicos. Na Inglaterra, foram criadas diversas sociedades científicas das quais participavam pessoas que não tinham formação universitária, e museus e exibições se disseminaram pelo país.

Merecem destaque, ainda, as grandes exposições universais realizadas a partir da metade desse século, primeiro na Inglaterra e depois em outros países europeus, para divulgar os avanços obtidos em vários campos. Além disso, o progresso econômico foi de fato possibilitado pelo aprimoramento das técnicas de produção, embora a prosperidade proporcionada por elas não atingisse a todos. Afinal havia muita pobreza e os problemas sociais persistiram mesmo nos países onde o desenvolvimento era maior. Por outro lado, teve grande importância nesse tempo a distinção entre os povos civilizados e os selvagens, irracionais e primitivos, representados de forma racista e preconceituosa, que serviu como justificativa para a dominação europeia sobre diversos países, colocando em xeque os ideais iluministas de direitos iguais e universais, pois nem todos seriam igualmente humanos.

Na terceira parte do livro, a autora dá um salto até a Segunda Guerra e suas consequências. Nessa época, muitas tecnologias relevantes no mundo atual foram desenvolvidas, como é o caso dos computadores digitais, dos foguetes e dos satélites, e as pesquisas espaciais tiveram grande influência sobre os rumos que a ciência seguiu. Mas, depois da explosão das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, a “narrativa otimista de que a ciência e a tecnologia serviriam apenas ao bem da humanidade foi posta em questão”. Interesses militares, políticos e econômicos mobilizaram “milhares de cientistas e bilhões de dólares”, inviabilizando a noção de que a ciência é neutra ou desinteressada, podendo ser usada para o bem ou para o mal. Para a autora, nunca ficou tão evidente a relação entre pesquisa científica e fins políticos. Por outro lado, impôs-se a visão de que era necessário que o Estado se encarregasse do bem-estar das populações, visto que o mercado não pode garantir justiça social.

Então Roque faz o que chama de “pausa” para analisar os anos 1970, 1980 e 1990, quando a Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço (Nasa), no lugar de investigar a existência de vida em outros planetas, como Marte e Vênus, voltou-se para o estudo da Terra como um sistema complexo, dinâmico e autorregulado. O Centro de Voos Espaciais Goddard, por exemplo, criado para dar suporte à exploração espacial, iniciou um programa de pesquisas espaciais sobre o clima, no qual um sistema de satélites foi direcionado à observação da Terra. Foi quando nasceu o que se denomina “ciência do sistema Terra” e se descobriram evidências de que os seres humanos tinham se tornado uma verdadeira força geológica, capaz de alterar o clima terrestre, e a noção de Antropoceno começou a ser debatida.

A autora discute então algumas das soluções que têm sido propostas para os principais desafios que enfrentamos no mundo e no Brasil de hoje, sobretudo as mudanças climáticas, que podem tornar o planeta inabitável. Uma delas é a aplicação de “tecnoconsertos” (technofix) por meio do que se chama de “geoengenharia”, como técnicas para impedir que a radiação solar chegue à atmosfera terrestre, como uma película de poeira extraída da Lua, ou para aumentar a porcentagem dessa radiação que é refletida. No entanto, manipulações desse tipo causam diversos efeitos colaterais e podem provocar prejuízos ao meio ambiente. Outra proposta que ela menciona é a colonização de Marte, investimento de alguns bilionários num projeto em que evidentemente não cabe todo mundo. Como a autora pondera, essas apostas tecnológicas “funcionam como um atalho para que o problema das mudanças climáticas não seja abordado de frente, com todas as consequências econômicas que ele implica. Enquanto se tenta desviar de transformações sociais urgentes, buscam-se saídas arriscadas, cuja face antidemocrática se torna cada vez mais explícita”.

Conforme Roque propõe na parte final do livro, o que se faz necessário é um pacto verde global que busque ao mesmo tempo reduzir as emissões de gases de efeito estufa e promover o desenvolvimento de uma economia mais justa. Nesse contexto, países do Sul global, como o Brasil, devem criar projetos políticos de fato transformadores, que levem em conta a necessidade de combater as mudanças climáticas e a desigualdade social. Esses projetos não devem se basear no pacto que se estabeleceu no período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, em grande medida responsável pelos problemas enfrentados agora. Em vez de nos paralisarmos diante da perspectiva de que podemos nos extinguir ou de pensar na colonização de Marte, devemos fincar os pés na Terra e inventar soluções abrangentes, inclusivas e solidárias, abandonando a “economia da promessa”, renovando a confiança no conhecimento científico e imaginando outra maneira de a humanidade habitar o planeta.

© Ricardo Lima

Flavia Natércia (1973-2023) era jornalista especializada na cobertura de ciências e tecnologia, e divulgadora científica. Formada em Ciências Biológicas e mestre em Ecologia pela Unicamp e doutora em Processos Comunicacionais pela Umesp, fez especialização em Jornalismo Científico e pós-doutorado em Percepção Pública da Ciência e Divulgação Científica no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp. Também era formada em Letras (Português/Italiano) pela UFRJ.

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