As extraordinárias habilidades cognitivas das aves
Por Flavia Natércia
20 de agosto de 2023
No livro A inteligência das aves (Fósforo, 2022), a divulgadora científica e observadora de aves Jennifer Ackerman mostra que é infundada a crença ainda hoje disseminada de que as aves sejam seres pouco inteligentes por terem um cérebro pequeno. Nas últimas duas décadas, diversos estudos realizados em campo e em laboratórios pelo mundo têm mostrado que elas são capazes de uma série de façanhas cognitivas – muitas delas comparáveis às dos primatas –, como a resolução de quebra-cabeças, a realização de operações matemáticas simples e a criação de ferramentas, habilidade que até pouco tempo atrás se acreditava ser exclusiva de seres humanos, como a linguagem e a consciência.
Há aves que conseguem prever a chegada de tempestades distantes, encontram o caminho para voar a lugares desconhecidos a milhares de quilômetros de distância da área onde vivem, imitam de modo preciso o canto de centenas de outras espécies, memorizam os locais onde esconderam dezenas de milhares de sementes ao longo de centenas de quilômetros quadrados e aprendem umas com as outras. Além disso, devemos levar em consideração o sucesso ecológico e evolutivo desses organismos: existem cerca de 10.400 espécies de aves, mais do que o dobro do número de mamíferos. Elas surgiram há mais de 100 milhões de anos e estão presentes em quase todos os hábitats, mostrando-se capazes de sobreviver e se reproduzir em muitos ambientes diferentes, o que requer a invenção de inúmeras estratégias de sobrevivência e engenhosidade.
O livro se divide em oito capítulos. Cada um deles “conta a história de aves com habilidades extraordinárias – técnicas, sociais, musicais, artísticas, espaciais, inventivas e adaptativas”, provenientes de variadas partes do mundo, como a África do Sul, as ilhas Galápagos, a Austrália, a Nova Zelândia, a ilha de Nova Caledônia, os Estados Unidos e a Inglaterra.
Um dos exemplos mencionados por Ackerman é o papagaio-cinzento Alex, pesquisado e treinado pela psicóloga animal Irene Pepperberg. Ele dominava um vocabulário de centenas de palavras inglesas para objetos, cores e formas, entendia as categorias “igual” e “diferente” para números, formas e cores, conseguia aprender conceitos abstratos e soletrar palavras, além de compreendê-las e utilizá-las “para conversar com sentido, inteligência e talvez até sentimento. Suas últimas palavras para Pepperberg, quando ela o colocou de volta na gaiola na noite anterior à sua morte, foram seu refrão diário: ‘Seja boazinha, te vejo amanhã. Eu te amo’”.
Outro exemplo são os corvos selvagens da Nova Caledônia, no Pacífico Sul, que não somente confeccionam suas próprias ferramentas, como também transmitem estilos de fabricação de uma geração a outra e incrementam ao longo do tempo seus projetos de instrumentos. E tudo indica que isso só se torna possível porque os corvos passam muito tempo aprendendo com seus pais e aprimorando suas habilidades, algo que ocorre também com os seres humanos e sugere haver uma relação causal entre um alto nível de habilidade tecnológica na obtenção de alimentos e um longo período juvenil durante o qual os pais garantem seu fornecimento aos filhotes.
Além disso, o cérebro dessas aves é maior que o de gralhas-pretas, pegas e gaios europeus, com um aumento em áreas do prosencéfalo que podem estar associadas ao controle motor fino e ao aprendizado associativo. E o cérebro dessa espécie também tem um número maior de células da glia, que em seres humanos parecem associadas ao que se denomina plasticidade sináptica, relacionada aos mecanismos de aprendizagem e memória. Por isso a mente desses animais tem sido examinada para identificar os mecanismos cognitivos que eles usam, os quais podem oferecer insights sobre a evolução do pensamento humano e da inteligência em geral.
Pode-se elencar, entre outros: as pegas, que conseguem reconhecer a própria imagem no espelho; os gaios-da-califórnia, que escondem seus depósitos de alimento de outros gaios; as aves canoras, que aprendem seus cantos da mesma forma como nós aprendemos línguas e aves que utilizam pontos de referência geométricos para se orientar no espaço tridimensional. Chapins britânicos aprenderam, no início do século XX, a abrir garrafas de leite, e esse truque foi ensinado de um a outro de modo que, “na década de 1950, as garrafas de leite de toda a Inglaterra estavam sob ameaça”. Gralhas, gaios, chapins, garças, tico-ticos, cucos, maçaricos, corujas – todos dão sinais de inteligência que equivalem e, em alguns casos, até superam capacidades mentais atribuídas aos primatas.
Uma série de experimentos realizados nos últimos anos atestou a manifestação de comportamentos complexos em aves, como a capacidade do papagaio-cinzento de somar números e categorizar objetos, a precisão com que corvídeos memorizam a localização de esconderijos de alimento de outras aves e a habilidade do corvo-da-nova-caledônia para fabricar e usar instrumentos a partir de uma ampla gama de materiais. São diversos os relatos de uso de objetos e de técnicas engenhosas para carregar água, enxugar-se, coçar as costas, atrair presas e defender-se de ameaças potenciais. Com isso, tem diminuído a resistência para admitir que as aves sejam inteligentes, embora ainda seja preciso entender por que e como se manifesta sua inteligência.
A autora aborda como se pode medir a inteligência das aves, algo que envolve, por exemplo, a criação de quebra-cabeças, baterias de testes e experimentos criativos para avaliar sua capacidade de resolver problemas ou a realização de observações cuidadosas de seu comportamento, como a busca e a manipulação de alimentos e a forma como se comunicam. Faz-se necessário, ainda, examinar os neurônios dos animais e as conexões que se estabelecem entre eles, pois nas sinapses, e não no tamanho do cérebro, podem estar as respostas sobre as diferenças da capacidade de inovação entre uma espécie e outra. A distribuição dos neurônios pode importar mais do que a quantidade: nas araras, por exemplo, 80% dessas células se encontram na parte do cérebro semelhante ao córtex primata, a crista ventricular dorsal, o que proporciona uma “grande capacidade computacional”. Cientistas descobriram, ainda, que a densidade de neurônios nos cérebros de aves pode ser comparável à dos primatas.
Ackerman também mostra como as aves evoluíram a partir de dinossauros e discute uma ampla gama de fatores envolvidos no crescimento do cérebro e no desenvolvimento da inteligência, como os ambientes onde as espécies evoluíram, os desafios enfrentados para garantir a sobrevivência e a reprodução e a resolução de problemas ecológicos, a extensão da infância e o cuidado parental e a importância de pressões sociais na evolução de mentes flexíveis e inteligentes para estabelecer boas relações, aprender com os outros, defender territórios, lidar com indivíduos que realizam furtos, escolher um parceiro, cuidar da prole, dividir responsabilidades, evitar disputas, monitorar o comportamento das outras para tomar decisões, reconhecer e acompanhar vários indivíduos e prever o que aliados farão.
Ainda resta determinar se as aves são capazes de momentos de insight e se é possível atribuir a elas uma teoria da mente, “a compreensão de que outros têm crenças, desejos e perspectivas que são diferentes dos seus”, algo que alguns especialistas acreditam não existir em espécies não humanas. No entanto, algumas espécies parecem manifestar ao menos componentes dela. Também não se sabe se as aves experimentam faculdades sociais ou emocionais como a empatia, a compaixão e a tristeza. Certamente, respostas para essas perguntas serão obtidas nos próximos anos, com a expansão das pesquisas em torno de assunto tão intrigante. Independentemente disso, a partir de tudo que Ackerman conta, podemos aposentar a expressão “cérebro de passarinho”, admirar as aves não somente pela beleza, pela leveza e pelo canto, e reconhecer que elas também têm muito a nos ensinar sobre as formas como a inteligência se manifesta.
Flavia Natércia (1973-2023) era jornalista especializada na cobertura de ciências e tecnologia, e divulgadora científica. Formada em Ciências Biológicas e mestre em Ecologia pela Unicamp e doutora em Processos Comunicacionais pela Umesp, fez especialização em Jornalismo Científico e pós-doutorado em Percepção Pública da Ciência e Divulgação Científica no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp. Também era formada em Letras (Português/Italiano) pela UFRJ.