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Um peso no ventre

Por Rita Palmeira

20 de fevereiro de 2022
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Autora do arrasador O lugar, livro que fez barulho por aqui em 2021 (ainda que publicado na França quase quarenta anos antes, em 1983), e do ótimo Os anos, Annie Ernaux começa a se tornar conhecida dos leitores brasileiros. A capacidade de falar de si sem esquecer que o eu é parte do mundo social; a linguagem sem floreios; o olhar arguto para as distinções de classe – tudo isso contribui para o sucesso de sua escrita muito particular e para afastá-la de uma autoficção, por assim dizer, de viés mais ensimesmado. A publicação de outro livro seu no Brasil, O acontecimento, e a promessa de que ainda em 2022 saia La honte [A vergonha] são razões para celebrar. Afinal, com o perdão da imagem gasta, antes tarde do que nunca.

Lançado na França em 2000, O acontecimento narra, em suas cerca de oitenta páginas, o antes, o durante e o depois de um aborto feito pela autora aos 23 anos. É desse evento que fala o título, esse acontecimento que permanece vivo a ponto de 35 anos mais tarde ainda ser necessário narrá-lo – Les armoires vides [Os armários vazios], livro de estreia de Ernaux, de 1974, tratava do assunto de forma mais ficcionalizada.

Ao contrário do que talvez se imagine, não há questão moral na memória insistente desse evento na vida da escritora – o que o traz à lembrança são as formas variadas de violência a que ela foi submetida a partir da decisão que tomou.

Uma delas tem a ver com a percepção de que a gravidez a fazia retornar a seu ambiente familiar modesto: “Eu estabelecia confusamente uma ligação entre minha classe social de origem e o que estava acontecendo comigo. A primeira a fazer um curso superior numa família operária e de pequenos comerciantes, eu tinha escapado da fábrica e do balcão. Mas nem o vestibular nem a graduação em letras puderam alterar a fatalidade da transmissão de uma pobreza da qual a filha grávida era, da mesma forma que o alcoólatra, o emblema. Eu estava ferrada, e o que crescia em mim era, de certa maneira, o fracasso social”.

Essa sensação atravessa a narrativa à medida que os percalços enfrentados a aproximam e a distanciam de seu universo social de origem. É assim com a mulher que lhe faz o aborto, a sra. P.-R.: “Não tenho mais certeza se ela calçava pantufas. E se lhe atribuí esse costume das mulheres que saem assim de casa para fazer compras na mercearia do bairro, foi porque para mim ela é uma figura do meio popular, do qual eu estava me distanciando”.

E também com o médico residente que se comporta de forma rude ao atendê-la – “Eu não sou o encanador!”, ele lhe diz aos gritos – e, no dia seguinte, se envergonha ao descobrir que a paciente era uma universitária: “Essa frase, como todas as que marcam esse acontecimento, frases muito ordinárias, proferidas por pessoas que falavam sem refletir, ainda repercute em mim. Nem a repetição, nem um comentário sociopolítico podem atenuar a violência: eu não ‘esperava’ por isso. De modo fugaz, creio ver um homem de branco, com luvas de borracha, que me enche de pancada gritando ‘eu não sou o encanador!’. E essa frase […] continua a hierarquizar o mundo em mim, a separar, como que a golpes de cassetete, médicos de operários e de mulheres que abortam, os dominantes dos dominados”.

Quem já se aventurou pelos livros de Ernaux sabe que o nascimento da escritora como tal coincide com a consciência – que acompanha seu êxito escolar – de seu descolamento da origem modesta, ainda que esta, claro, a constitua. Essa é a espinha dorsal de sua literatura: olhar para o mundo a partir da própria origem e a contrapelo do destino que construiu para si, em tudo dissonantes. É preciso, contudo, sublinhar que a leitura que a francesa faz da própria origem é fruto de suas escolhas – os estudos, a carreira intelectual –, ou seja, é resultado do destino que construiu para si e que a afastou do meio familiar. Esse ir-e-vir de ambientes sociais distintos produz uma prosa que aponta para a própria vulnerabilidade sem, com isso, perder a altivez.

*

O acontecimento narra uma situação de tremendo desamparo. Uma jovem universitária engravida de um também jovem universitário. Ela não cogita levar adiante a gravidez. Estamos em 1963. O aborto era proibido na França. Ela teria, portanto, de recorrer a esquemas clandestinos. Ela não tem contatos e tem a certeza de que não ter contatos é também decorrência de sua origem social. Está sozinha e precisa urgentemente se livrar disso. Sim, a gravidez era um problema do qual ela precisava se desembaraçar. Não há meias palavras para dizê-lo. Não há dúvidas em relação à decisão. Ela só quer que isso termine. E, para tanto, precisa submeter-se a um processo que se mostra arriscado e violento física e simbolicamente.

*

O acontecimento é a história de um aborto, não é uma história sobre o desejo de ter filhos. E esse deslocamento aparentemente banal modifica por completo a narrativa, assim como a implicação da narrativa em quem lê. Trata-se de uma mulher que arbitra – vejam só – sobre a própria vida e o próprio corpo, e é obrigada a passar por situações dolorosas (dessas que deixam um antes e um depois) para ter seu desejo cumprido.

O desejo de interromper aquela gravidez possibilita que depois ela deseje muitas coisas, inclusive ser mãe – mas disso somos informados ao final do livro, quase à guisa de curiosidade.

O aborto de Ernaux interrompe mais do que uma gestação. “Eu matei minha mãe em mim naquele momento”, escreve. Ao encerrar a gravidez, ela deixa de reproduzir o destino social de sua mãe: “Nunca mais vi a sra. P.R. Nunca mais parei de pensar nela. Sem saber, essa mulher provavelmente gananciosa — mas com uma casa pobre — me arrancou de minha mãe e me jogou no mundo. É a ela que eu deveria dedicar este livro”.

A partir da história da autora, O acontecimento fala de desejo e de arbítrio sobre o próprio corpo, e dos constrangimentos sofridos pelas mulheres ao sustentá-los; de como esses constrangimentos, eles também, variam conforme o status social, o de origem, que de um jeito ou de outro – revela-nos, afinal, a observação do mundo social – se sobrepõe ao de destino, ampliando a dimensão violenta desse e de outros acontecimentos.

© Marcio Costa

Rita Palmeira é editora e crítica literária. Doutora em literatura brasileira pela USP e mestre em Teoria Literária pela Unicamp, é curadora de livros da Megafauna.

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