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Tempo, tempo, tempo, tempo

Por Rita Palmeira

18 de setembro de 2022
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Se me propusessem o desafio de dizer em uma palavra sobre o que é o romance de estreia da carioca Helena Machado, eu diria que é um romance sobre luto. Afinal, a narradora perdeu o pai, e toda a narrativa, em seu vaivém de memória, parte desse evento dramático. Convém, no entanto, olhar com mais vagar para essa narradora-protagonista, uma artista que não produz e que chega aos quarenta anos sem uma vida profissional estabelecida, dependente da mesada paterna, e com uma vida amorosa que ela vê como de não muito êxito por não ter se casado ou tido filhos.

Falando assim, a um desavisado pode parecer que a protagonista é uma tola. Nada mais distante do que se lê em Memória de ninguém: ela é interessantíssima, certamente a personagem mais interessante na ciranda de namorados e familiares que vão e vêm enquanto ela conta a dificuldade de perder o pai e assumir tardiamente a vida adulta. Alternando-se entre o lírico e o cômico, Helena Machado revela, nas quase trezentas páginas do romance, enorme segurança narrativa.

Se, no entanto, eu pudesse ir além de uma única palavra para comentar o livro, eu diria que Memória de ninguém é uma história sobre o tempo: o do luto, o do amadurecimento, o biológico (este, sempre implacável com as mulheres): “Ali na porta do elevador vendo meu pai desabar daquela maneira, percebi que a dor provocada pelos arrependimentos é capaz de abrir túmulos, e junto com meu pai eu chorei a culpa pela minha incapacidade de prover alento, pois enquanto eu dizia a ele que o amava muito e que essa era a única coisa que realmente importava, eu me perguntava quando eu havia atravessado a linha divisória da vida: em que tempo eu percebi que eu não tinha todo o tempo do mundo, mas que é o tempo que me possui inteira?”.

*

A visita à casa da infância depois da morte do pai, em companhia das irmãs e da mãe, é o que alinhava a narrativa. Dali ela relembra episódios vividos na infância e na vida adulta, reconstitui a relação com as irmãs, com a mãe e com o pai, como também com os antigos namorados. É a partir dali que sabemos de seu distúrbio alimentar, de abusos sofridos na infância, de relações abusivas na vida adulta.

Para narrar esse arco de episódios, dois registros são mobilizados: há momentos claramente líricos (em sua maioria, ligados à família), e outros francamente cômicos (em geral quando ela conta dos amores). Há ainda momentos em que os registros se misturam e terminam por provocar, pelo inesperado, o riso no leitor.

“Naquela vila-velório também velada pelos vigias que também eram vigiados por Deus, como se o velar fosse feito de inúmeros véus, em cada uma das casinhas envoltas pelo ar fosco e úmido da Ilha, as pessoas passavam o dia inteiro e também dormiam com o morto e era para isso que servia o quartinho anexo à salinha do caixão, e aí quando a minha tia mulher octogenária do meu tio veio perguntar pra gente quem de nós quatro passaria a noite ali, dissemos em uma só voz que ninguém, ninguém passaria a noite lá, ora essa, meu pai já nem estava mais ali, e minha tia achou um absurdo e disse que só não ficaria ela mesma porque estava resfriada e isso não seria bom para o meu pai […]”.

As aliterações em “v” ensaiam um registro elevado que logo é solapado pelo elemento cômico da história, a senhora octogenária que sugere não poder velar o morto porque seu resfriado poderia fazer mal a ele. Esse deslizar entre jogos de palavras espirituosos e situações engraçadas é central na narrativa e fundamental para tornar a protagonista a personagem interessante que é. A inversão de expectativa, o vaivém que é da memória mas é também de controle narrativo estão reunidos em torno dela.

*

“Assim vou ficando para trás com meus acúmulos que são diferentes mas também iguais aos acúmulos do meu pai, porque enquanto meu pai acumulava papéis virtuais que não serviam à sua vida prática, eu acumulo ideias que apenas me atravessam como se eu fosse completamente porosa, incapaz de capturar qualquer coisa sólida.”

Nesse trecho, a repetição de “acúmulo/acumular” é parte desse grande jogo de linguagem que constrói o livro. Queria, no entanto, sublinhar o ritmo que resulta dessas repetições ou desses jogos de linguagem. Quando está num redemoinho de memórias, a narradora lança mão de períodos enormes, como um fluxo de consciência, que inclui tiradas pândegas. Quando a cena se passa na casa (aquela da infância, que costura o romance), sobressaem períodos curtos e mais sóbrios. Esse movimento, em que humor e gravidade se alternam e por vezes se sobrepõem, é um dos grandes trunfos desse livro a que não faltam trunfos.

Nesse romance sobre o tempo, sobre o passar do tempo, o ritmo é, portanto, central. Como acelerar a narrativa de uma vida? Ou, mais importante, como retrocedê-la? Ou ainda: como refletir sobre ela sem ficar no mesmo lugar? O luto é também enfrentar a passagem do tempo, como nos lembra esse ótimo Memória de ninguém.

© Marcio Costa

Rita Palmeira é editora e crítica literária. Doutora em literatura brasileira pela USP e mestre em Teoria Literária pela Unicamp, é curadora de livros da Megafauna.

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