Os sapatos bem lustrados e o traje adequado
Por Rita Palmeira
29 de maio de 2022
Narrado por uma criança que acompanha o pai caixeiro-viajante em suas andanças, enquanto a mãe fica em casa e a escola fica para trás, Kramp – que sai pela Moinhos, em tradução de Silvia Massimini Felix – mostra a um só tempo o desalento e o encanto da história contada e protagonizada por M.
Nesse premiado romance de estreia da chilena María José Ferrada, misturam-se candura e dureza na narrativa da menina que precocemente é exposta ao universo adulto – e o que resulta daí é um relato comovente sobre a relação pai-e-filha e que tem como cenário o nunca nomeado Chile pinochetista.
A história começa com D.: seu início de carreira como caixeiro-viajante coincide com a chegada do homem à Lua. Aquele evento extraordinário de julho de 1969 lhe dá a motivação necessária ao espírito vendedor: “No momento em que D. viu Neil Armstrong dar o primeiro passo na Lua, pensou que, com determinação e o traje adequado, tudo era possível”. Entre os parafusos e maçanetas que tentava vender, D. toca sua vida até que, em novembro de 1973, um encontro improvável o faz conhecer aquela com quem ele se casaria: “D. achou que era a mulher mais bela do mundo. E a mulher, que fazia um tempo que já não ria, achou que D. era falador e divertido”. Desse enlace entre uma universitária e um caixeiro nasce M., a protagonista e narradora da história.
Conhecida por seus livros escritos para crianças, María José Ferrada arrisca-se pela primeira vez no universo adulto, mas observado pela perspectiva infantil. A escolha, que muitas vezes pode mostrar-se arriscada, revela-se aqui um dos trunfos desse livro curto e comovente. Contribuem para isso a construção dos personagens, em especial de D. e M., pai e filha, mas também da mãe ausente, “não porque saísse muito de casa”, apressa-se a esclarecer a menina, “mas porque uma parte dela havia abandonado seu corpo e resistia a voltar”. (Sublinhe-se que, entre todos os personagens, a mãe é a única que não recebe iniciais, é sempre designada pelo vínculo com a filha-narradora.)
D. vendia produtos Kramp – pregos, serrotes, martelos, maçanetas, olhos mágicos – e via o mundo como uma grande engrenagem que tenta ensinar à filha. “Com os sapatos bem lustrados e o traje adequado, tudo é possível”: imbuída do ensinamento paterno, aos 7, M. decide passar uma escova nos sapatos, botar um vestido e se associar o pai.
A “carreira” da menina dura quase dois anos, tempo de prolongadas ausências à escola, justificadas com toda sorte de embuste. “Uma mãe inteira teria notado”, diz M., mas pondera: “Isso a tornava irresponsável? Acho que não; acho que, antes, a vida é que tinha sido um pouco irresponsável com ela”. A história da mãe, a razão de seu humor taciturno, tudo isso só será conhecido quando M. chegar ao que chamou de sua “vida seguinte”, depois de um evento que transforma a narrativa e reorienta a organização familiar. Até então, eram ela e o pai, e os vilarejos, os hotéis, as cafeterias, as lojas – ela o seguia em seu mundo de caixeiro, e ele, à medida que ia lhe ensinando os macetes da profissão, aproveitava-se de sua presença para promover as vendas e também para safar-se de situações ruins.
O episódio deflagrador da mudança na narrativa origina-se daí: D. resolve ajudar E., um fotógrafo que caçava “fantasmas”, ou os ossos desses “fantasmas”. É quando a violência ditatorial, insinuada na tristeza da mãe ou na interdição em tratar de política, aparece, e a terra debaixo dos pés daquela família, tão apegada às peças que garantiam a firmeza das coisas, se move de vez.
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A construção narrativa de Kramp se ergue justamente sobre a movimentação, seja pela linguagem, seja pelo universo a que alude. A narradora-personagem, que flerta com o mundo adulto – trabalha, vive entre adultos, fuma, participa de trapaças, ganha dinheiro às escondidas, faz permutas com o pai, organiza seu mundo pelo catálogo dos produtos Kramp –, é a mesma que é capaz de estruturar seu universo pela experiência infantil.
Uma cena ilustra bem essa movimentação. A certa altura, S., outro caixeiro, a chama para trabalhar também com ele. S. quer remunerá-la, o pai veta, afinal, o dinheiro marcaria a relação contratual que ele não permitiria: ela pode ajudar, mas não receber por isso. M. controla sua raiva diante da recusa do pai em que ela fosse paga por seu trabalho, assente enfim e, em tom que qualifica profissional, pergunta: “Quando começamos?”. S. quer que ela comece já no dia seguinte, mas M. o frustra – tem uma festa de aniversário na escola, a menina argumenta. Ainda fazendo as vezes de protetor, o pai sentencia: “Então depois de amanhã”, e ficam todos de acordo.
Aqui, o que se vê é uma menina que, não querendo faltar ao evento escolar, negocia com os adultos, impondo suas condições, que são, contudo, prontamente aceitas. M. opera entre esses dois mundos, o do trabalho adulto e o da confraternização infantil. Tanto é que a “permuta” que o pai combina com ela lhe rende muitos dividendos: brinquedos. “Nos meus quase oito anos, eu tinha descoberto que D. não era lá grande coisa como pai, mas era um excelente patrão”, completa.
Essa movimentação é interrompida pelo evento que encerrará sua “carreira” precoce e que, paradoxalmente, ao resgatá-la do universo adulto, não é capaz de inseri-la de volta no universo infantil, porque o eixo saíra do lugar de vez. É a oscilação de registro de linguagem – do lírico ao violento – que anuncia a verdadeira perda da inocência:
Nesse espaço privilegiado da noite, eu observava como as estrelas juntavam calor e: puf! apareciam. Passavam-se os milênios, elas consumiam sua última reserva de hidrogênio e puf: se dissolviam.
A visão das estrelas se mesclava com a das tachinhas que, apesar de serem de aço inoxidável, não escapavam do ciclo da dissolução. (Paf! Paf! Paf!) […]
E foi nessa clareza da mente que escutei uma voz rouca que gritou:
― Vamos ver se no inferno você vai ter vontade de continuar procurando ossos, cachorro de merda.
*
Kramp é narrado com lirismo e singeleza por M., uma criança sensivelmente esperta. Mesmo as frases automotivacionais que o pai anota como grandes momentos de sabedoria, fórmulas que encetam, para ele, lições de vida, funcionam como contraponto de leveza àquela vida de precariedade e instabilidade. Mas, a certa altura, algo se desfaz, a menina cresce e, protagonista desse despretensioso romance de formação, percebe a mecânica do mundo à volta – o dos adultos que é, afinal, também o das crianças: “Os sapatos excessivamente brilhantes que antes eram o símbolo de uma crença – a possibilidade de alcançar a Lua – de um momento para o outro me pareceram um truque para disfarçar a camisa gasta”.
Rita Palmeira é editora e crítica literária. Doutora em literatura brasileira pela USP e mestre em Teoria Literária pela Unicamp, é curadora de livros da Megafauna.