O afeto pelas vítimas
Por Rita Palmeira
26 de junho de 2022
Num país que a cada semana se mostra mais degenerado, ler o último livro da argentina Ariana Harwicz é difícil. O narrador é um homem velho, acusado de, na véspera de Natal, ter estuprado e matado uma menina que ainda não sabia andar, um bebê, portanto. Ele conta, por meio de um monólogo digressivo, sua história entremeada à do próprio julgamento. Se o assunto é perturbador em si, nesta semana em que jornais brasileiros noticiaram uma menina que aos onze anos, grávida em decorrência de um estupro, foi proibida de abortar pela juíza que avaliava o caso, a empreitada fica ainda mais árdua.
Isso posto – e que o parágrafo acima sirva de cautela a leitores mais sensíveis a temas que embrulham o estômago –, é preciso dizer que Degenerado é um livro de tirar o fôlego, no melhor sentido da expressão. E, sobretudo, já que estamos ainda na parte dos avisos, não é um livro para quem dá mais valor ao enredo do que à forma de contar uma história. O enredo é tão terrível quanto simples: um homem que, quando menino foi exposto a sordidezes várias, se torna, ele também, um sórdido brutal.
O modo como o narrador conta sua história de vida (com informações conflituosas que exigem do leitor um constante olhar de desconfiança), como tece observações sobre mulheres, imigrantes, instituições, e como dá sua versão, suas versões, para a noite do desaparecimento da menina – isso, sim, é o que faz o livro.
“Quero que vocês se perguntem se o fato de eu ser desagradável é um motivo para me imputar uma sentença definitiva.” Essa desconfiança lançada pelo narrador contribui para entender o que movimenta esse romance. Não há dúvida de que quem conta a história é um ser vil e repulsivo, e capaz de fazer aquilo de que o acusam e que ele, em alguns momentos, chega a admitir. Ele é alguém em quem se reconhece o despreparo para o entendimento das leis que regem a vida em sociedade: “[…] não senti prazer rasgando a vagina da garota até fazê-la esguichar. Não senti nada se não senti nada não pode ser crime”.
As formulações perturbadoras seriam suficientemente indigestas para não seguirmos na leitura, não fosse a habilidade de Ariana Harwicz, pródiga em narradores perturbados (vale olhar os livros de sua trilogia: Morra, amor, A débil mental e Precoce, todos pela Instante), para criar a ilusão de que seremos capazes de, ao fim do livro, entender as motivações daquele narrador-personagem, entender o que aconteceu ali para que ele pudesse delinquir, margear a sociedade.
Há, contudo, uma dimensão muito importante na construção narrativa e que é o oposto dessa, chamemos assim, esperança de compreensão do mal. O monólogo é construído de modo a sugerir que ele, o estuprador e assassino, não é o único pervertido ali. E o faz dobrando o argumento, construindo uma moral própria que, se por um lado, como qualquer discurso lunático, pode ter momentos de lucidez (por exemplo, quando mostra o espírito vingativo que move o desejo de punição), no mais das vezes rejeita a própria ideia de humanidade.
Seu discurso desarrumado sugere que, por trás da aparente “pureza moral” de seus acusadores, está uma sociedade, ela também, corrompida. Mais ou menos como um grande e daí?, ou eu fiz ou eu não fiz, até poderia fazer, mas e tudo que está ruim por aí? Por quê, pergunta ele, apenas o desejo precisa respeitar a lei? Trata-se de um discurso que despolitiza ao apostar na dispersão – se o erro está em todo lugar, por que meu erro deve ser punido?
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“Nada mais distante do que declarar meu afeto pelas vítimas, elas já têm de sobra. As vítimas são as únicas que não são abandonadas, as únicas que este século escuta, desde que sejam vítimas ideais. De que sejam suas vítimas. O sistema as designa e nós compramos. O mercado as mostra para nós e acendemos velinhas.”
Uma das grandes qualidades desse livro é a capacidade de formalizar em texto o ressentimento como um afeto que não se sustenta a um olhar mais detido, porque se expõe, mesmo quando são mobilizados os grandes inimigos – sistema, mercado, família. Assim, não há explicação para a ação monstruosa: o discurso disperso ou delirante, as ilações que faz, as construções e os afetos contraditórios, nada disso se apresenta como explicação. A despeito da vontade do leitor de entender o ato brutal, nenhuma resposta é dada, e é isso que garante que não se crie empatia alguma pelo narrador.
O risco embutido em conferir voz a um acusado de estupro, e estupro de um vulnerável, está dado desde o início; ele é, contudo, habilidosamente contornado pela prosa segura e inteligente de Harwicz. Ao fim do livro, qualquer leitor saberá quem proteger.
Rita Palmeira é editora e crítica literária. Doutora em literatura brasileira pela USP e mestre em Teoria Literária pela Unicamp, é curadora de livros da Megafauna.