Jardim de infância
Por Rita Palmeira
24 de julho de 2022
Em A cachorra, Pilar Quintana narrava a história de Damaris, que, não podendo ter filhos, adota a cachorrinha Chirli e, quando esta dá cria, a despreza. A mulher e a maternidade estavam ali. Em seu novo livro, Os abismos (Intrínseca, tradução de Elisa Menezes), a escritora colombiana volta à mesma questão, mas de outra maneira: pelo foco narrativo de uma criança. Claudia é uma menina de Cáli, filha de um dono de supermercado e de uma dona de casa. Pai e mãe têm uma considerável diferença de idade, e o casamento dos dois, aos olhos da menina, parece servir-lhes bem até que uma crise se impõe e o mundo da menina se desorganiza.
As quatro partes em que o livro está dividido acompanham esse período: antes da crise, o evento que a deflagra, a ideia de que ela está remediada e a sugestão de que não.
Costura o enredo, e é sua força motriz, a relação de mãe e filha e o fantasma da rejeição materna, que persiste em duas gerações e surge na reiterada pergunta “Se você pudesse ter evitado, teria me tido?”, feita pela menina Claudia à mãe, que, por sua vez, a fizera também à sua mãe. Em construção especular que reitera o foco nos personagens femininos, mãe e filha têm o mesmo nome. Ainda que, à incômoda pergunta, Claudia-mãe responda “Ai, Claudia, eu não sou como a minha mãe”, a sensação da menina é de que a mãe teria preferido uma vida diferente.
Filha única, a menina organiza sua história familiar pregressa e presente com os fragmentos de que dispõe: as fotos penduradas na parede ou emolduradas em porta-retratos, telefonemas furtivos, a “rinite” da mãe, o monstro que acredita estar escondido dentro do pai. Por mais que ensaie conversas com mãe e pai, é através da boneca Paulina, a quem atribui discursos e mesmo ações impensáveis, que o leitor acompanha a escalada de desamparo e angústia da protagonista.
A estrutura especular alcança outra dimensão quando a família decide passar o verão numa quinta fora da cidade e a história de outra mulher, de outra família, se impõe. Mulher lindíssima, Rebeca (sim, alusão evidente ao romance de Daphne du Maurier e ao célebre filme de Hitchcock) brigou com o marido muitos anos antes, numa festa na região, pegou o carro e desapareceu: como o corpo nunca foi encontrado, toda sorte de fantasia é construída em torno de seu sumiço. Diziam que estava infeliz e que bebia demais. Suicidou-se ou fugiu? Rebeca era mãe de duas meninas pequenas (colegas da Claudia-mãe). Ao saber disso, a reação da menina Claudia, mais uma vez recorrendo à voz da boneca, é: “Então, Paulina está certa: ela não queria desaparecer. […] uma mãe nunca abandonaria suas filhas, além do mais sendo tão pequenas”. Ela precisa repetir para si e para a mãe o comportamento maternal esperado, a fim de que ambas se lembrem dele.
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A casa da quinta, celebrada pela beleza e a pujante mata do entorno, vai aos poucos ganhando ares fantasmagóricos, qual a Manderley de Rebecca: pela estrada tortuosa e perigosa de acesso (e que o pai, trabalhando em Cáli, precisará enfrentar diariamente), seus precipícios, a neblina que a cerca, o desaparecimento dessa mulher misteriosa muitos anos antes e cujo comportamento a mãe vai mimetizando.
No início, as histórias que a mãe lia em revistas de morte de mulheres-celebridades, ainda que assustadoras, pareciam distantes à menina. A mãe, contudo, as interpretava: “estavam cansadas de suas obrigações”, sugerindo o suicídio mesmo quando a versão oficial era outra. A morte de uma amiga da mãe e o verão na quinta de uma mulher que, sim, talvez tivesse tirado a própria vida aproximam o que era ruído distante e vão se tornando fonte de tormento para a menina, que, lúcida, diz ao pai que a mãe está doente.
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“Mamãe, você quer viver?”
Assim como fez diante da pergunta sobre Claudia ter sido uma filha desejada, a mãe responde sinuosamente: “Não pergunte bobagens”.
Ao longo do livro, não são poucas as situações em que proliferam os não-ditos. As lacunas são, então, preenchidas pelos poucos fragmentos de que Claudia dispõe, pela observação do movimento familiar, pelos indícios que uma menina é capaz de decifrar e sobretudo por sua fantasia. Assim como Rebeca não fugiria, porque “mães não abandonam as filhas”, a mãe triste na foto do casamento tinha uma explicação: “Os noivos, à frente, cara a cara, trocando alianças. Ele sorria radiante. Ela, como olhava para baixo, parecia triste, mas é porque estava concentrada em colocar a aliança nele”.
Há um esforço para, em seu mundo infantil e solitário, dar ordem às coisas e, diante da instabilidade familiar, ordenar o que não está ordenado em leis que precisam ser inabaláveis.
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A sensação de iminência de tragédia que consome a menina, contudo, chega ao leitor por meio de um engenhoso arranjo de Quintana, não só pela escolha da narradora infantil, como por acentuar a precariedade de informações a que uma criança tem acesso. Não há como não se compadecer do desamparo daquela menina cujos pais também foram crianças desamparadas (ele perdeu a mãe no parto e foi criado por uma tia; ela não tinha o amor da mãe).
Para esse efeito, contribui a descrição, também especular, da natureza. O apartamento dúplex onde vivem é chamado de “a selva”, pela abundância de plantas. À menina, a escada que liga os dois andares parece um despenhadeiro (“um despenhadeiro impossível para o maravilhoso mundo verde do primeiro andar”). O apartamento de Glória Inès, amiga da mãe, era também repleto de plantas, mas espinhosas como cactos, e ficava no 18º andar de um edifício. A vertigem da vista era também a de um precipício. A vida vegetal convive em tensão com os abismos, o da escada e do andar alto.
Quando chegam à casa da quinta, a escala da vegetação e do precipício se amplia, os limites se borram, e o assombro com a mãe que passa a ficar ainda mais alheia ganha tamanho espaço que Claudia sente falta de casa: “uma selva de mentira que não dava medo e a escada que na verdade era só uma escada”.
Há, aqui, é certo, uma recusa ao mundo exterior que a apavora. Há também, contudo, uma recusa à metáfora que costura o livro: Claudia reivindica a vegetação que não a atemoriza e a concretude da escada que une dois pavimentos, ao contrário do abismo, que não conduz a lugar nenhum além da morte. Ela deseja jardim e escada emoldurados, assim como porta-retratos que ajudem a contar sua história familiar. Mas, em Os abismos, os afetos (sobretudo entre mãe e filha), como as plantas, não são domesticáveis, e a edulcorada infância não tem lugar.
Rita Palmeira é editora e crítica literária. Doutora em literatura brasileira pela USP e mestre em Teoria Literária pela Unicamp, é curadora de livros da Megafauna.