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Era vidro e se quebrou

Por Rita Palmeira

23 de outubro de 2022
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Paula perde o marido num acidente. Horas antes, porém, ele havia lhe dito que a estava deixando porque se apaixonara por outra pessoa. Ter de lidar com o que ela chama de “dupla tragédia” é o desafio da narradora-protagonista deste Aprender a falar com as plantas, da catalã Marta Orriols. (O título, com ecos de autoajuda, não faz jus ao livro). Dividido em duas partes – “Antes” e “Depois”, assim, sem um “durante” –, o romance narra o processo de luto dobrado dessa médica neonatologista de 42 anos que vive em Barcelona.

“Mauro e eu fomos um casal durante muitos anos. Depois, e somente durante umas horas, deixamos de ser.” O pouquíssimo tempo transcorrido entre o almoço em que o marido lhe diz que vai se separar dela e a notícia de sua morte deixa Paula numa espécie de limbo conjugal. Como não tinha havido tempo para espalhar a notícia entre amigos e familiares, aos olhos dos outros Paula seria a viúva, ainda que não conseguisse se sentir assim: “Preciso dizer que, para mim, morreu alguém que já não me queria, que não há status post mortem para quem fica vivo nessas condições”.

Nessa primeira parte, que se estende por quase todo o livro (“Antes”), Paula alterna momentos de interlocução imaginária com o (ex-)marido morto e a narrativa de seus dias de luto. Esse processo inclui repensar, às apalpadelas, sua relação com Mauro. Sabemos então que anos atrás ele lhe propôs oficializar o casamento e que ela recuou; que ele lhe deu um anel selando o compromisso e que ela a certa altura deixou de usá-lo; que ele queria filhos, mas que ela não desejava ser mãe.

Antes do almoço do dia fatídico, Paula reconhecia que a relação não ia bem e estava pronta a fazer um gesto que, acreditava, pudesse reverter a acomodação em que viviam. “O mínimo de estima necessária que empurrava nossa relação era confortável para mim e eu também não conhecia nenhuma outra forma de amar. Mas nos amávamos”, conta.

Nessa longa investigação solitária e pessoal que é o luto, Paula volta à infância. A morte abrupta da mãe, a relação muito amorosa, mas de quase nenhum afeto corporal, que desenvolve com o pai, e a sensação que a acompanha ao longo da vida, de que todas as coisas e pessoas são efêmeras: “Sempre tenho me lembrado que tudo que se compromete a permanecer pode ir embora sem avisar, e aquilo que se enche pode se esvaziar de repente com a violência de um arranhão. Acontece com as mães, com os apartamentos, com os cachorros, acontece com o amor”.

Esse sentimento de que tudo pode se desmanchar no ar faz dela uma personagem que anseia pelo controle absoluto no cuidado com os bebês que recebe no hospital e que, no entanto, não são seus. Não ter estado no momento da morte da mãe e, agora, na de Mauro é fonte de angústia que só se acomodará quando consegue acompanhar os últimos momentos de uma bebê de que vinha cuidando: “E então a morte a tira de mim sem consideração, a leva, mas desta vez cheguei a tempo e sinto que fui capaz de ganhar a partida. Estou aqui. Estou ao seu lado”. Não há controle possível, percebe Paula, mesmo quando se está presente.

E se esse é um livro sobre ausências (da mãe, do marido e também de sua ausência na morte dos dois), é também sobre presença.

“O que há de mais oposto à morte é o desejo”, constata Paula no início do livro. Esse romance é justamente sobre a reconquista do desejo, que não deixa de ser um jeito de nomear a travessia do luto. E isso se dá das formas mais diversas: na necessidade de trabalhar, precisando se insurgir contra o que chama de “profetas do luto”, aqueles que lhe dizem como deve viver o momento de pesar e que insistem para que ela fique em casa e descanse; na descoberta do afeto corporal mais básico; na exigência de se sentir novamente desejada e se permitir viver histórias com outros homens.

Essa conquista não vem sem padecimento, claro. Como seguir sem contar a própria história? E como, ao contá-la, não ser vista com piedade e, nesse sentido, voltar ao lugar de onde tentava sair, a de vítima da “dupla tragédia”? Paula tinha dois enormes desafios: enterrar uma relação longa e enterrar o homem que era parte dessa longa relação. Não são, contudo, lutos equivalentes, como trata de esclarecer: “Há alguma coisa triste e vagamente desprezível quando o amor se apaga, mas nada parecido com a derrota aniquilante da morte. Cremos que a domesticamos com rituais, lutos, símbolos, cores, mas ela é selvagem e livre. É ela que sempre manda. A morte manda na vida, nunca o contrário”.

*

Paula aprendeu com o pai tudo sobre pássaros; Mauro gostava de plantas. Entre a fugacidade das aves que vêm e vão e a permanência das plantas que criam raízes, Paula constrói seu itinerário, ou seu “Depois”, narrado com delicadeza neste Aprender a falar com as plantas.

© Marcio Costa

Rita Palmeira é editora e crítica literária. Doutora em literatura brasileira pela USP e mestre em Teoria Literária pela Unicamp, é curadora de livros da Megafauna.

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