Era uma vez um homem
Por Rita Palmeira
21 de agosto de 2022
Murilo, porto-alegrense de 36 anos, sem dinheiro e sem a namorada, que escapou para um retiro espiritual em Goiás, aluga o apartamento de uma desconhecida, onde encontra esquecida uma tartaruga. Para resolver o destino do animal, começa a se corresponder com a dona da casa, e a relação entre inquilino e senhorio é o eixo sobre o qual Julia Dantas constrói seu segundo romance, Ela se chama Rodolfo. Trata-se, no entanto, de um eixo que a cada momento faz a narrativa pender para um aspecto da vida de Murilo, e que está ensaiado na bela e contundente abertura do livro: “Era uma vez um homem”.
A essa primeira frase, que remete ao início dos contos de fada e ao mesmo tempo alude ao fim de certa masculinidade, une-se a situação que revela, de forma sutil, essa quebra de expectativas: “Murilo empurra e se joga contra a porta, sacode-a e chuta, mas a chave não funciona”. O protagonista, esse do “era uma vez um homem”, não é capaz de abrir uma porta, e não qualquer uma – a de sua própria (e recém-alugada) casa. Vê-se vítima de um embuste, certeza que se esboroa assim ele descobre que há um jeitinho para fazer a porta abrir, sem que precise colocá-la a baixo. Entra, então, pela primeira vez no apartamento e lá encontra a tartaruga.
De algum modo, está tudo dado já nesse início. O Murilo sorumbático e avesso a pessoas vai cedendo lugar, à medida que se abre às novas circunstâncias, a um Murilo em que as redes de afeto ganham lugar.
No centro dessa transformação, estão sem dúvida Francesca, a dona do imóvel, mas também Rodolfo, a tartaruga deixada no apartamento. Encontrar alguém que possa cuidar de Rodolfo vira uma missão para Murilo, que tem planos de viajar ao encontro da namorada em Goiás. À medida que os amigos de Francesca vão se recusando a cuidar de Rodolfo – o que exige de Murilo verdadeiras expedições pela cidade e mesmo fora dela –, cresce o vínculo dele com o bicho e também com a misteriosa proprietária da casa. Essa construção afetiva, que transforma o personagem e o reorienta de muitas maneiras, o faz reviver situações da infância, a relação com os pais e com a namorada, e o jeito de exercer sua masculinidade.
No início do romance, Murilo diz que não se preocupa em ser bom e que não gosta de gente. Ao fim da jornada, aquilo que ele era, ou pensava que era, deixa de fazer sentido. E é este o ponto fundamental de Ela se chama Rodolfo, já entrevisto no estranhamento provocado pelo título: o que parece ser não é.
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Em outras palavras: em Ela se chama Rodolfo, não há como distinguir o que é verdade do que não é. A todo momento o protagonista é confrontado com uma nova situação, que faz que ele, diante da instabilidade, admita a própria precariedade, tornando-se assim mais distante da virilidade atribuída ao masculino.
“Somos todos um delírio coletivo. Tu está aí, numa vida paralela, e essa vida nem existe”, escreve a Francesca um Murilo irado com novas descobertas a respeito de sua interlocutora. “Francesca, o que foi tudo isso? Mais um engano”.
O logro, ou a fantasia do logro, que de variadas formas atravessa o romance pela perspectiva de Murilo, surge então como sugestão ao leitor: talvez nada disso exista. E nós, que apenas assistíamos ao desenrolar da narrativa, somos convocados a pôr em xeque a instabilidade também do que lemos.
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Menos comum nos romances contemporâneos de autoria feminina, o protagonista do romance é um homem. Mas é um homem confrontado pela namorada e, a seu modo, pela mãe, quanto à maneira de ser homem. Ao tratar do masculino e do feminino, Ela se chama Rodolfo discute, de forma muito delicada, a obrigação de ser o homem que não é ou, a depender de para onde se olha, que não era. E Julia Dantas o faz com uma inteligência e sensibilidade que merecem destaque.
Quando a narrativa começa, apesar da chave (com o perdão do trocadilho) dada nas primeiras linhas, o leitor pode acreditar que se trata de um romance sobre um homem desarranjado na vida, que bebe e quer ser escritor, a quem faltam dinheiro e o amor da namorada. Esse enredo não seria exatamente novo. Dantas, no entanto, subverte esse quase clichê da ficção contemporânea brasileira ao olhar para esse tipo com uma lente de aumento. Nesse movimento, vai além e aponta a instabilidade e a precariedade da narrativa em si, que produz a ilusão e em que nada é o que parece.
Rita Palmeira é editora e crítica literária. Doutora em literatura brasileira pela USP e mestre em Teoria Literária pela Unicamp, é curadora de livros da Megafauna.