Acorda, amor
Por Rita Palmeira
1 de maio de 2022
Li A Morte e a Donzela seis anos depois de um deputado federal, hoje presidente da República, ter, em seu voto para depor do cargo uma presidente eleita, louvado o homem que a torturara barbaramente. Li A Morte e a Donzela pouco depois de outro deputado federal, filho do primeiro, ter desdenhado, em sua conta no Twitter, da violência sofrida por uma jornalista que foi torturada grávida durante a ditadura militar.
Tinha assistido, muitos anos atrás, à versão para o cinema que Roman Polanski fez da peça, lançada pouca coisa depois da publicação do livro, e ainda lembrava do enredo e das imagens com muita nitidez, o que não costuma me acontecer. Mas A Morte e a Donzela de Polanski tinha me marcado, e o resultado era a memória vívida daquela peça filmada, daquela história terrível escrita pelo argentino naturalizado chileno Ariel Dorfman e que sai agora em nova tradução, de Sérgio Molina, pela Carambaia.
“O tempo é o presente; o lugar, um país que provavelmente é o Chile, mas que poderia ser qualquer país que acaba de sair de uma ditadura.” A rubrica de tempo e espaço da peça de Dorfman é incomodamente atual, apesar de já distarmos décadas dos regimes ditatoriais tanto no Chile quanto no Brasil, o que, por outro lado, dá a dimensão da nossa tragédia.
Construída em três atos, de que participam três personagens – Paulina Salas, Gerardo Escobar e Roberto Miranda –, a peça narra o encontro de uma mulher com o homem que a torturou.
O país da peça, esse Chile tão familiar, estava em transição para o regime democrático, e a Comissão da Verdade local – “Comissão Presidencial de Investigação” – tinha por missão identificar mortos e desaparecidos, mas não aqueles que sobreviveram. Havia ainda a garantia de não punição, nessa anistia que, no fundo, só não anistia as vítimas. Gerardo, marido de Paulina, fora nomeado presidente dessa Comissão. Na volta para a casa de praia onde a mulher o esperava, seu carro quebra e ele é socorrido por um homem que lhe dá uma carona. Esse mesmo homem voltaria horas depois à casa.
A democracia é a novidade com que o casal ainda não se “acostumou”, e a chegada inesperada de alguém é razão de preocupação. Pois bate à porta, já tarde da noite, quando Paulina e Gerardo dormiam, o prestativo homem da estrada: “Então, o rádio estava ligado e… fiquei pasmo quando ouvi seu nome no noticiário. Na hora que deram o nome dos membros da Comissão Presidencial de Investigação e falaram ‘dr. Gerardo Escobar’. […] Aquilo ficou batendo na minha cabeça, e só quando cheguei em casa lembrei que era você, e aí também lembrei que seu estepe tinha ficado no meu porta-malas e que amanhã você ia ter que consertar esse pneu”, esclarece o visitante, que passa a querer extrair de Gerardo uma série de informações sobre a comissão. Dada a hora avançada, Gerardo convida Roberto Miranda, o visitante —que, agora se sabe, era médico —, a pernoitar em sua casa.
Paulina ouvira escondida a conversa dos dois e reconhecera a voz do estranho. Ao se dar conta de que está hospedando seu algoz, ela o imobiliza e o amarra. Quando acorda, o marido tenta dissuadi-la da ação que julga tresloucada, sem sucesso: “Posso saber o que você está pensando em fazer, Paulina?”. “Eu não. Nós dois. Vamos julgá-lo, Gerardo. Vamos julgar o dr. Miranda. Você e eu. Ou a sua famosa Comissão de Investigação vai fazer isso?”, diz ela antes de as luzes se apagarem, ao fim do primeiro ato.
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Há duas grandes dimensões na peça, e as duas se cruzam na construção da história daquele casal e na história recente daquele país. Antes da visita do médico, Gerardo contara a Paulina de sua nomeação, e ela questionara a eficácia da comissão em promover justiça. O marido acredita que o futuro do país dependa apenas do estabelecimento da verdade sobre o passado; a mulher insiste em que é preciso olhar o passado, estabelecer a verdade e fazer justiça. À medida que a trama se desenrola, Paulina se torna o emblema do que a peça aponta: para seguir, é preciso enfrentar o passado.
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Conhecemos as violências a que Paulina foi submetida quando ela se torna algoz de seu algoz, reproduzindo falas aviltantes e, com isso, recontando sua história: “É a voz dele. Reconheci assim que ele entrou aqui ontem à noite. É a risada dele, o jeito de falar. Pode aumentar a força, que essa puta aguenta. Aumenta. Ela ainda está longe de desmaiar. Aumenta a força.”
Se ela se insurge contra o esquecimento – aquele que é necessário para seguir em frente, acreditam marido e governo – e exige que o torturador confesse, Gerardo, contudo, exige dela as provas. O testemunho não basta. Voz, cheiro e pele são, para ele, insuficientes. As citações de Nietzsche e a música de Schubert, presentes na noite anterior como nas sessões de tortura, parecem a ele indícios, não provas inequívocas. Há um descrédito em dobro, da vítima que é também uma mulher: “São fantasias de uma mulher doente”, diz o médico ao marido de Paulina.
Cria-se, a certa altura, uma aliança entre os dois homens, ambos assustados, cada um a sua maneira, com a insânia da mulher brutalizada. O médico diz que o que importa ali é a opinião de Gerardo: “O senhor é a sociedade, ela não. O senhor é a comissão presidencial, ela não”, diz.
A descrença em relação à identidade do torturador se deve também à dificuldade de Gerardo em aceitar que um indivíduo cultivado, que escuta Schubert e lê Nietzsche, pudesse ser desumano. A cultura, contudo, como sabemos desde Auschwitz, não impede a barbárie.
Há dois acertos de conta que precisam ser feitos nessa noite, e eles se imiscuem na interseção entre a esfera doméstica e a esfera pública. À espera da confissão do médico – Paulina exige isso para soltá-lo –, Gerardo pede à mulher que lhe conte aquilo que ela nunca foi capaz de fazer: seus meses sob o jugo dos militares. Paulina, por sua vez, quer que Gerardo lhe fale da mulher com quem ele estava na noite em que ela foi libertada da prisão e da tortura. Ao longo do diálogo, intercalam-se menções ao número de violações sofridas por ela e ao número de relações sexuais dele com a tal mulher. “Preciso saber a verdade”, diz Paulina. “Mesmo que ela acabe com a gente?”, responde Gerardo.
A ambivalência das frases ajuda a compor a tensão da peça. Também na esfera íntima há um embate entre duas formas de lidar com a memória: é preciso esquecer o passado para ir adiante ou é preciso lembrar cada detalhe para então seguir em frente?
O terceiro ato, contudo, inaugura um novo momento. Paulina começa a contar a história de sua prisão e as sessões de tortura com o médico que punha para tocar A Morte e a Donzela, de Schubert, compositor que ela adorava até então. À medida que ela faz seu relato, entra a voz de Roberto como o médico torturador – é o momento em que a ambiguidade construída até ali, pela descrença do marido, pela descrença no discurso da vítima, se dissipa.
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“Imagine o que é a pessoa passar anos e anos sendo tratada como louca e mentirosa e de repente ser vista novamente como um ser humano, contando sua história para todo mundo ouvir”, diz Gerardo a respeito de uma depoente da Comissão, na última cena da peça, em que os espectadores são instados a – eles também – testemunhar (e mais não conto para não estragar o desfecho).
Ao contar a história da depoente, Gerardo está também tratando de Paulina, que pôde, enfim, narrar a violência sofrida e ser ouvida – por leitores e espectadores – sem ser desacreditada. É ela a protagonista.
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Li A Morte e a Donzela ainda não tinha completado um mês da posse de Gabriel Boric, novo presidente do Chile. Que os bons ventos soprem para além da cordilheira.
Rita Palmeira é editora e crítica literária. Doutora em literatura brasileira pela USP e mestre em Teoria Literária pela Unicamp, é curadora de livros da Megafauna.