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A felicidade (não) se compra

Por Rita Palmeira

27 de março de 2022
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Romance de estreia da poeta e editora espanhola Elena Medel, As maravilhas narra a história de duas mulheres da mesma família cuja vida é marcada pela precariedade material. Avó e neta, María e Alicia não se conhecem, ainda que vivam na mesma cidade.

Armados em torno de acontecimentos ocorridos em períodos distintos, os capítulos intercalam episódios da vida de María e de Alicia, num vaivém de anos que começa em 2018, recua a 1969, avança para a década de 1990, retrocede aos anos 1970 e 1980, até chegar novamente ao 8 de março de 2018. Nesse dia internacional da mulher, as espanholas fizeram uma greve feminista importante para essa história que conta também, de alguma forma, a história recente da Espanha.

O leitor acompanha duas vidas estorvadas pela falta de dinheiro e pelo que as personagens entendem como resultado dessa falta: certa infelicidade. Cada uma, porém, lida com isso à sua maneira. As diferenças entre as duas, saídas da mesma Córdoba natal em épocas distintas, vão se desenhando com nitidez à medida que a narrativa avança.

María engravidou muito jovem, de um homem cujo nome não é mencionado – ele é apenas o “homem do ônibus” ou aquele de quem a filha herdou os olhos pequenos –, e se viu obrigada a deixar a bebê aos cuidados da família enquanto buscava um emprego na capital que lhe rendesse o suficiente para sobreviver e custear a vida da pequena Carmen. Os planos não saem exatamente como imaginava, o dinheiro nunca é suficiente, e ela segue em Madri primeiro cuidando dos outros – da criança dos outros, da senhora idosa dos outros… – depois fazendo faxina. O elo tênue com Carmen se desfaz, e María constrói sua vida de “mãe solteira, sem filha”. Mas também de “uma faxineira com inquietações”: ela gosta de livros, de política e de ir ao cinema. E tem um namorado com quem não quer viver junto porque isso significaria perder a liberdade que seu pouco dinheiro lhe garante.

Filha de Carmen, Alicia tem a vida transtornada pelo suicídio do pai endividado ainda quando ela era menina: a imagem da morte dele é seu pesadelo recorrente. Comerciante, dono de restaurantes, ele dera à mulher e às duas filhas uma vida confortável, a ponto de despertar a inveja nas colegas de classe de Alicia. Tudo isso se esboroa depois do suicídio: “Devo reconhecer que minha mãe deu um jeito em tudo com rapidez e precisão. Assumiu a derrota e voltou para a primeira casa. É a única coisa que admiro nela: a dignidade com que tirou a fantasia de nova-rica. […] Voltamos para o bairro, o bairro de verdade: o dos pobres. […] E foi assim que minha mãe, Eva e eu recuperamos a vida que tínhamos nos empenhado em evitar. Acabou-se a história, morreu a vitória”.

A perda sentida do pai, para Alicia, vem junto àquilo que determinou seu destino: “O sentimentalismo não me interessa. Sinto falta do meu pai, mas também sinto falta de algo que eu nunca vivi e que deveria ter vivido: não ter que trabalhar, ter a geladeira sempre cheia, passar as férias em lugares que as pessoas que conheço não poderiam pagar”. Adulta, ela se casa com Nando, mas dele não parece esperar mais do que proteção material.

O movimento de contar a história dessas duas mulheres (que não têm laços de afeto para se tornarem “avó” e “neta”) revela mais do que o destino de quem dispõe de poucos recursos materiais e se vê ceifado em suas aspirações. Sim, é certo que a falta de dinheiro interrompe sonhos e ambições e reordena a trajetória dos indivíduos – isso está posto nesse arguto romance de forma ao mesmo tempo delicada e crua.

No entanto, As maravilhas oferece também um olhar para o que se faz com a própria história. Assim, se Alicia resolve morar com o namorado e depois se casar com ele para garantir um teto e certa segurança, María prefere continuar a pagar aluguel a ter que viver com o namorado com casa própria, porque entende que coabitar tiraria sua liberdade: “Eu nasci para casar e criar filhos, cozinhar e limpar a casa, e talvez para trabalhar fora quando não estivesse trabalhando dentro; mas minha vida foi por outro rumo, e quero que continue assim”, explica María a Pedro, seu companheiro.

Se María e Carmen, mãe e filha, têm a vida reorientada por uma gravidez na juventude, Alicia recusa essa dimensão cíclica, que associa à pobreza, e não aceita ser mãe, apesar do desejo do marido de ser pai.

Aliás, os personagens masculinos em As maravilhas funcionam quase como “escada” para que as características das complexas personagens femininas sejam reveladas: Nando, ao garantir alguma estabilidade material a Alicia; Pedro, ao fracassar na tentativa de prover María. O pai de Carmen não aparece; o de Alicia se mata. O mais importante deles, Chico, irmão de María, assume a criação de Carmen e depois de Alicia, mas não é mais do que isto, alguém que desempenha papel maternal, subvertendo a expectativa de que essa tarefa caiba a uma mulher, e espécie de último fio a ligar aquela família. Em As maravilhas, por razões e de formas distintas (que, no entanto, remetem à pobreza), as mulheres não são mães.

Há, contudo, um personagem feminino cuja ausência costura o romance: Carmen. Ela é descrita, quando bebê, a partir do olhar da mãe e, quando adulta, pela perspectiva da filha adolescente. O ponto de vista de Carmen, ao contrário do de María ou do de Alicia, não compõe a história, mas impõe-se como um grande vazio que resulta na impossibilidade de as pontas, avó e neta, se tocarem. Nesse sentido, ao pular uma geração, a narrativa aponta a precariedade desta vez afetiva de um núcleo familiar que nunca chega a se constituir como tal.

*

“No fundo se trata de dinheiro: da falta de dinheiro”, diz María. “Mas também se trata disso: ser mulher”, sublinha. Romance fino e feminista, As maravilhas conta a história de mulheres pobres a quem a falta de dinheiro impossibilitou a consecução de planos e sonhos. A despeito disso, elas constroem seus espaços (a que os homens à volta não têm acesso) para ter algo além da preocupação com a sobrevivência.

Ao erguer sua arquitetura narrativa em um arco temporal não cronológico de cinquenta anos, Medel sugere que a estrutura não se modificou substantivamente para as mulheres: a precariedade material ainda lhes é mais penosa e custosa, porque delas se espera que cuidem dos filhos, da casa, do marido, do trabalho doméstico, e, se possível, que trabalhem fora para contribuir com o orçamento familiar. María e Alicia, cada uma à sua maneira e com o sofrimento que carregam, tentam descobrir espaços para ser mais do que isso. Não à toa a narrativa começa e termina no emblemático 8 de março de 2018 espanhol.

© Marcio Costa

Rita Palmeira é editora e crítica literária. Doutora em literatura brasileira pela USP e mestre em Teoria Literária pela Unicamp, é curadora de livros da Megafauna.

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