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O Brasil do trauma

Por Miguel Del Castillo

23 de setembro de 2022
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Estamos a uma semana daquela que provavelmente é a eleição mais importante de nossa jovem e conturbada democracia. Até porque versa sobre a essência mesma desse regime, ao qual o atual presidente já demonstrou não ser afeito. Há muitas teorias a respeito de como chegamos até aqui; alguns localizam o ponto de virada em 2013, com as jornadas de junho, outros em 2016, com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, e há quem identifique os dois como vetores do exponencial aumento do ódio e o crescimento da extrema direita que transforma adversários em inimigos. O fotógrafo Gabriel Carpes talvez esteja no grupo do meio, com o seu Faltam mil anos de história (2019), fotografado entre 2016 e 2018 (terminando pouco depois da eleição de Jair Bolsonaro).

Carrego em minha mente as imagens do fotolivro de Carpes desde a primeira vez que o vi, no ano de seu lançamento, pois encerravam um sentimento que era meu, mas também de muitos: uma desolação, entenderíamos depois, por termos visto certa ideia de Brasil mais ou menos estabelecida ser esfacelada diante do apoio da maioria da população com Bolsonaro e tudo o que ele representava e representa. Desde que comecei estas colunas queria escrever a respeito disso, mas achei que convinha esperar até este momento.

Não conheço Porto Alegre, local onde a maioria das fotografias foi realizada, mas na folha de rosto incluem-se apenas a data e a palavra “Brasil”, como se nesse quinhão de terra houvesse – e de fato me parece haver – reflexos de todo o país. Preciso discordar do autor quando ele diz, numa entrevista, que “um trabalho que fale do Brasil a partir de 2019 seria bem diferente”, pois não há como falar do Brasil de hoje sem pensar no que aconteceu nesses anos anteriores; muitos dos temas que nos mobilizam agora já estão enunciados aqui.

Nas imagens – todas, com apenas duas exceções, verticais – destacam-se empreendimentos imobiliários sendo construídos ou recentes, algo que nos remete ao que foi central para a Lava Jato, isto é, as construtoras, mas também a uma ideia mais abstrata de construção de um país. Em planos mais abertos vemos condomínios novos, casarios genéricos, comércios de rua, além de muitos muros, cercas, arames farpados, vidros fumês e até uma casa cujas aberturas foram fechadas com tijolos – sugerindo a impossibilidade do diálogo, a sensação de isolamento.

A burocracia privada e estatal é revelada nos interiores de escritórios de empresas, sindicatos e repartições, locais novos em folha ou caindo aos pedaços, com papéis empilhados, máquina de bater ponto, micro-ondas entuchado na copa etc. Os interiores, aliás, são quase sempre abandonados ou desleixados, com cadeiras inutilizadas, mesas entulhadas, folhas de papel pardo na janela por causa da ausência de cortinas; a primeira foto do livro mostra um escritório amplo com um mobiliário ao fundo e, em primeiro plano, pendendo do teto, duas canaletas metálicas de eletricidade que parecem na verdade sustentá-lo.

Bandeiras do Brasil aparecem bastante, ora contrastando com estandartes vermelhos, ora na fachada de um imóvel antigo e chique ou na padronagem da toalha de um restaurante espartano – o verde-e-amarelo que foi sequestrado pelo novo integralismo. Na mesa de uma portaria, junto ao interfone, uma Bíblia repousa aberta, as páginas todas sublinhadas – um índice, já naquele momento, de como a parcela evangélica da sociedade ia se tornando incontornável.

Espalhados pelo livro há alguns retratos, como o de um homem com protetores de ouvido num clube de tiro, diante de um cartaz com vários modelos de armas. Noutro, um militante da CUT, com colete e boné da organização, sentado num gramado que talvez seja o Acampamento Lula, registrado mais adiante. Há também retratos fotográficos ou pintados nos ambientes que Carpes fotografou – Getúlio, Thatcher, Martin Luther King, uma parede na Assembleia Legislativa repleta de fotos de políticos –, que adicionam uma camada extra de mediação, distanciando os retratados do espectador e ao mesmo tempo transformando-os em personagens de um enredo cujo futuro se delineava cada vez mais incerto.

***

Em 2020, quando li Solução de dois Estados, o último romance Michel Laub, sempre me vinha à mente esse conjunto de imagens de Gabriel Carpes (penso que seu livro, mais do que regido por uma sequência, se faz por reunião/acumulação). Com uma sobriedade coetziana – de fato a estrutura do romance, com um narrador ausente que se limita a fazer perguntas aqui e ali, faz lembrar a de Verão, do escritor sul-africano –, Laub coloca diante das câmeras de uma documentarista alemã (a tal narradora ausente) e dos leitores a vida de dois irmãos: um empresário fitness, cujo negócio de academias se associou a uma igreja evangélica e se assemelha a uma milícia, e uma artista que pesa 130 quilos, cujas performances em vídeo versam sobre sua relação de não aceitação do corpo e a percepção das pessoas a respeito dele. É um documentário – Laub diz ter começado a escrever o livro em 2017 – que fala da violência brasileira a partir de um episódio de agressão que a artista sofreu durante uma palestra e (sabemos depois) das violências a que foi submetida na escola. Os capítulos marcados como “material bruto” ou “material pré-editado” são compostos pelas falas dos dois, no primeiro caso com eventuais (e crescentes) intervenções e interlocuções com a documentarista, e há alguns “extras/material a inserir” pelo caminho.

De maneira engenhosa, equilibrando-se numa trama e numa escrita que, se mal realizadas, poderiam descambar para uma quase justificativa do bolsonarismo per se, Laub destrincha a complexidade da identidade nacional ao esmiuçar a complexidade da vida e da interioridade desses personagens. Não há respostas nem caminhos. Essa sensação de ser exposto a tal “material”, bruto ou pré-editado – do país, das vidas que o constroem diariamente –, é a mesma que tenho ao rever, em 2022, o fotolivro de Carpes. Uma bruteza que expõe não só esse emaranhado complicado como também o conflito, desmontando o tão difundido entendimento equivocado da tal cordialidade brasileira – que já foi usado inclusive para justificar absurdos como a noção de que no Brasil não há racismo pois é todo mundo gente fina e pacífica.

São livros desoladores, sim. Ficamos cara a cara com esse Brasil do trauma, do bullying, da violência – não usei, de propósito, a palavra polarização, pois me parece necessário ir além desse maniqueísmo preguiçoso. Esse é o nosso país, também. E carece de reconstrução.

© Carol Ribeiro

Miguel Del Castillo é escritor, tradutor, editor e curador, autor de Restinga (2015) e Cancún (2019, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura). Foi editor da Cosac Naify e do site da revista ZUM. É curador da Biblioteca de Fotografia do Instituto Moreira Salles. De novembro de 2021 a novembro de 2022, resenhou livros de fotografia para o site da Megafauna.

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