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Sempre falta uma palavra

Por Heloisa Jahn

9 de junho de 2022
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Os contos de Marcelino Freire são para leitores incautos. Para leitores que aceitam um jeito de escrever que não busca a palavra justa e que embaralha a expectativa de quem lê para ler histórias. Desde Angu de sangue (2000), o primeiro dos seis livros de contos de Marcelino, trata-se de buscar uma voz. Ela é construída conto a conto, com as palavras que afloram da infância de menino simples em Sertânia, no semiárido pernambucano: “Este caçote de menino, trepeça dos diachos, onde chafurdou?”. As palavras trazem consigo, entranhados em sua singularidade, o clima, as experiências e os afetos de onde elas vêm. Vida gravada, como em fósseis. Com essa matéria, Marcelino Freire compõe seus contos. Em “Ensaio sobre a prosa”, ele não deixa lugar a dúvida: “O que eu escrevo é música, mas em decomposição. Não venham dizer que escrevo histórias. Ou mesmo que escrevo memórias. Monólogos. Não é nada disso. Meus personagens são as palavras. Eu costuro as palavras. Em permanente desalinhavo”.

São contos que subvertem os elementos da narrativa convencional: aqui, o encadeamento das palavras raramente busca a visibilidade da trama, secundária porque o que importa é acertar a sintonia que melhor desfira o golpe da surpresa. As composições, de frases curtas, avançam aos soquinhos: “O pai amarelou. Ali mesmo desmaiou. Nem ouviu o final da história. Meu filho gosta de um outro menino. Falou para a mulher. E agora?”.

Convocadas, as palavras — “brebôte”, “bregueço” — afloram da memória da infância e de monólogos, reflexões e diálogos interiores; nelas, o escritor encontra sua voz e constrói uma ecografia ímpar, em que ressoam experiências, sentimentos e opiniões que acorrem e se tramam na construção de um personagem-guia: o narrador de todos os contos. Ele é um compósito de retrato do autor e de porta-voz da indignação, do sofrimento, da ternura de alguém que repetidas vezes se sente excluído, migrante, exilado dos grupos e territórios humanos pelos quais vai passando, num percurso que parece não ter destino definido. Mas tem: a escrita é seu lugar de existência. Esse narrador polifônico, no qual às vezes a primeira e a terceira pessoa se confundem, se encarrega de criar um balanço para o eixo da leitura. Ele ensina o leitor a se deixar levar, porque é essa a maneira de perceber o que importa, ali — o cerne não explícito do conto.

O narrador-personagem é também um pensamento, e a voz com que se expressa mimetiza a lógica do pensamento: associações, sínteses, rimas, ecos, repetições… Ritmos se instalam, regidos por afetos. Aqui, as elipses do pensamento são parte constituinte da escrita; por isso os contos são, por vezes, crípticos: “João acorda, vai às cordas do violão, me levanta, cedo, ouço, ainda dormente, encostado ao travesseiro, ele, alheio a tudo, dedilhar a música sofisticada que apresentará, logo mais, à noite, com a simplicidade de quem sabe, sem saber, o dom que é viver”.

Todos os contos são curtos, balões de pensamento e de memória que se tramam e invertem a perspectiva usual, de escritores bem instalados na classe média ilustrada. Aqui, é do lugar dos exilados que se vê o mundo: do lugar dos pobres, das bichas, das crianças em sua sabedoria secreta, sempre à espera de um Papai Noel que não passa por ali. A visão invertida. Avessos ao discurso, os contos de Marcelino com frequência adotam o andamento típico da poesia. Neles, a repetição não tem somente a função de apontar as ênfases, mas define uma música e um ritmo. E a omissão do fecho é um recurso para deixar em suspenso o que foi engatilhado. A pontuação obedece à mesma lógica conotativa; ela pode até estar ausente, como em “Papai do céu”, mas sempre configura uma voz: “e papai perguntou se eu tinha tomado banho e eu falei que já tinha tomado banho mas não adiantou”.

Contos ainda mais especiais na releitura, no conforto de reconhecê-los e encontrar novidades.

Seleta: por pior que pareça reúne 21 contos retirados das seis coletâneas publicadas por Marcelino Freire entre 2000 e 2015.

© Bel Pedrosa

Heloisa Jahn (1947-2022) foi editora e tradutora literária. Trabalhou na Brasiliense, na Companhia das Letras e na Cosac Naify. Editou cerca de 80 autores brasileiros, sobretudo ficcionistas e poetas, e traduziu cerca de cem títulos para todas as idades.

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