Samba-canção na cozinha
Por Heloisa Jahn
12 de novembro de 2021
Comecei a ler José Falero por acaso: o título Mas em que mundo tu vive me atraiu, sendo o gauchês, com seu atropelo caprichoso de conjugações e plurais, minha primeira língua. Não havia lido os dois livros inaugurais de Falero, Vila Sapo – contos, 2019 – e Os supridores – romance, 2020 –, nem as resenhas sobre eles ou sobre este, uma coletânea de crônicas publicadas originalmente na revista digital Parêntese, de Porto Alegre. Portanto, livro e autor me chegaram novos.
Vários aspectos me empolgaram. O primeiro, e preponderante, foi a sensação de assistir à língua se movendo, se alterando, ficando mais rica ao incluir e naturalizar a língua viva da quebrada, até muito recentemente estancada em permanente exílio nos bairros onde é falada, quase como se fosse uma língua estrangeira de um povo de outra nação. Não por acaso, da vasta nação da gente excluída: os pobres, os pretos, esses que todo dia convergem das periferias para a cidade para fazê-la funcionar, para prestar serviços no território dos que “existem”, para os quais a legião que diariamente chega e se vai é invisível e sem voz. Nesse quadro, a literatura de José Falero é um ato de guerra, uma tomada de território.
Ao mesmo tempo que é um movimento de modificação do português brasileiro, a ocupação do quebradês é um fato político que opera mudanças de outra ordem. Ao adquirir som e volume, a língua dos invisíveis confere corpo a esses milhões de pobres que moram “tão longe”, nos bairros onde os “da cidade” não põem os pés. Só que não! Quem mora longe, em outro universo, são os “da cidade”, essa minoria cercada pela multidão que não quer mais permanecer invisível.
Falero sabe como inverter a lente de forma irretorquível, definitiva. Troca o registro do texto, vai de cá para lá sem rangido, para dizer o que tem a dizer – e que é monumental. Com que naturalidade faz a passagem da língua “culta” para a popular, que trajetos surpreendentes de linguagem! Algumas amostras. Em “O absurdo assado na brasa e metido no palito”: “Mais incrível de tudo foi quando dero aquele atentado na casa do Fandangos. Seis malandro, mano! Seis! Não era dois nem três. Era seis. Tudo de pistola, e o Fandangos avulso na baia, de samba-canção na cozinha, só com aquele 32 enferrujado do pai dele”… Em “Campo minado”: “… só Deus sabe o tamanho do esforço que tenho que fazer para que não se esvaia de mim toda e qualquer alegria, para que não se evapore o meu sorriso, para que eu possa conservar em mim alguma doçura”.
A crônica é um registro de episódios cotidianos, quase sempre triviais, apresentados com a tonalidade que lhes atribui o olhar sensível do cronista. As de Falero subvertem o repertório usual – urbano, gentil – ao deslocar-se para o universo da margem, onde a violência é a tônica; desde a violência básica, radical, da fome, até a que se abate a qualquer momento com as viaturas que trazem policiais quase sempre apoiados em suspeitas vagas a justificar o cacoete de tratar os corpos alheios como se lhes pertencessem. São esses os fatos do dia a dia que Falero apresenta, modificando o frescor tradicional do cânone da crônica. Não há a possibilidade de observar de fora o funcionamento do mundo. O que ele encontra e observa é o tumulto, a vida em desordem. Lírico, feroz ou melancólico, às vezes engraçado e até cômico, ele conta o que vê, para que fique visto e bem visto.
Uma escrita altiva, que se afirma em si, e não em contraponto. Crônicas que exigem para os excluídos o direito à arte: “Eu e os meus permanecemos tempo demais sem direito a isso. Sem direito a nos identificarmos com as pessoas que fazem arte. Sem direito a entender a arte como possível também para nós”.
Falero agora, com tantos outros, na poesia e na ficção, no teatro, na dança, na música, e mesmo, de forma ainda incipiente, no cinema… e antes deles Mano Brown e os Racionais MC’s, por exemplo… mais o pessoal do slam… Entre os pioneiros, sem dúvida Paulo Lins e, antes dele, Carolina Maria de Jesus, que, esquecida por tantos anos, agora volta com voz plena.
Heloisa Jahn (1947-2022) foi editora e tradutora literária. Trabalhou na Brasiliense, na Companhia das Letras e na Cosac Naify. Editou cerca de 80 autores brasileiros, sobretudo ficcionistas e poetas, e traduziu cerca de cem títulos para todas as idades.