Que língua é essa, Vilma Arêas?
Por Heloisa Jahn
6 de fevereiro de 2022
“Como fósforos numa caixinha”, os dezessete contos – ou textos, como prefere Vilma, que repele as classificações – de Um beijo por mês, pequenos e bem arrumados em seu livrinho bege, estão, um a um, prontos para explodir e arder. A matéria ignitora é a língua em que estão escritos. Uma língua que transita na superfície do que é narrado com o descompromisso de alguém que vai à feira de sacola no braço: a escolha das palavras, o andamento da frase, a direção doméstica em que parece avançar a narrativa não anunciam a explosão que fatalmente terá acontecido ao término da leitura – pela violência, pela dor, pelo lirismo.
Porque a língua que contava o conto num andamento tão discreto de repente estaca e, feito rolha de pesca, aponta para o fundo onde a realidade é grande demais, dura demais para almas atracadas ao cotidiano. A contundência dessa língua de casa vem, então, de sua eficácia em levar personagens falsamente mansos – usualmente o narrador – a produzir iluminações surpreendentes.
A literatura de Vilma Arêas é assim: cada conto, um fósforo que não dá chabu. Sua linguagem, despida de todo enfeite, desvela em simulacros de relatórios o que está oculto, o que há de grave e cabal na superfície da normalidade. Esse confronto entre a linguagem desataviada e o impacto das coisas referidas produz uma tensão que imanta e, repetidamente, desloca o leitor de sua posição confortável de assistência externa – porque, no descanso da linguagem, avançou incauto e se enredou sem perceber que avançava para um desvendamento que o comprometeria.
Quase todos os textos de Um beijo por mês são percursos no interior de cenas – de “instantâneos”: não por acaso, cinco deles têm essa palavra no título. A própria autora comenta: “Estes escritos são basicamente recortes”, e relembra dois dos sentidos da palavra recorte: o ponto de encontro do toureiro com o touro, na arena, e o parentesco com um ato de memória, já que “recorte” e “recordar” têm etimologia comum. É o que acontece aqui: a memória é o motor que posiciona as diferentes cenas no ponto exato do confronto.
Em quatro linhas e meia, o conto de abertura, “Como se fosse eu”, apresenta o personagem, o clima e o quadro em que se dará a trama: “Saí do oftalmologista com as pupilas dilatadas e me vi inesperadamente atingida pela explosão do sol de verão às duas da tarde. A paisagem dura exibia agora contornos diluídos, como se estivesse mergulhada numa jarra transparente cheia de leite”. Concisão, amor pela palavra, adesão à clareza da frase: componentes essenciais da escrita de Vilma Arêas.
Esse primeiro conto, especial por fugir ao esquema de recorte/análise dos demais, ilumina o livro inteiro com seu humor, seu otimismo, sua terna malícia. Se dois desconhecidos de oitenta anos podem ver um dia corriqueiro qualquer se abrir para uma inteira – e empolgante – novidade, qual o tamanho da reserva de vida que guardamos, cada um de nós?
Os quinze recortes que se seguem têm como tema a injustiça social, a fragilidade das pessoas e os vínculos do amor. A memória – o vento – os traz e deposita, para que se desvendem. A violência policial nas favelas, o assassinato de uma testemunha dos crimes da ditadura argentina, uma criança a dormir nos braços de uma estátua… O lugar do escritor aparece em “A entrevista”, em que a autora em pessoa, levemente disfarçada, entra em cena como entrevistada ardilosa que sabe muito bem o que vai dizer e com que finalidade, quando se dirige a um público que faz perguntas obtusas sobre o sentido da literatura e as intenções do escritor: a falsa tímida avança firme para o pugilato.
“De 9 anos” é uma maravilha. A cena da mulher atendida por um ginecologista que examina seu interior “como quem procura qualquer coisa perdida num areal” fala de uma medicina desconectada de seus pacientes, proferidora de sentenças, ligada não à vida, mas a protocolos que ignoram que dizem respeito a um ser humano emocionado.
“O rastro dos ratos” encerra o livro com um inventário amoroso de Ice, que quer contar seu sonho a Jo, a Margô, ao analista, ao taxista… E com Ice ficamos!
O livro foi publicado pela Luna Parque, pequena editora rigorosamente doméstica criada, mantida e levada à frente pela inteligência, pelo amor à literatura e pelo trabalho braçal dos poetas Marília Garcia e Leonardo Gandolfi.
Heloisa Jahn (1947-2022) foi editora e tradutora literária. Trabalhou na Brasiliense, na Companhia das Letras e na Cosac Naify. Editou cerca de 80 autores brasileiros, sobretudo ficcionistas e poetas, e traduziu cerca de cem títulos para todas as idades.