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Uma aprendizagem pelo sono

Por Edimilson de Almeida Pereira

11 de setembro de 2022
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O poeta, tradutor, jornalista, naturalista e crítico literário Leonardo Fróes nasceu em Itaperuna, município fluminense, em 1941. Como jornalista, foi redator do Jornal do Brasil, O Globo e da Encyclopaedia Britannica. Foi autor da coluna “Verde” publicada no Jornal da Tarde, de São Paulo. Os textos dessa coluna, sob a coordenação do professor e crítico Victor da Rosa, foram reunidos no volume Natureza: a arte de plantar, editado em 2021 pela Cepe Editora, de Pernambuco. O poeta estreou em livro com a coletânea Língua franca, em 1968. Seguiram-se A vida em comum (1969), Esqueci de avisar que estou vivo (1973), Anjo tigrado (1975), Sibilitz (1981), Assim (1986), Argumentos invisíveis (1995), Um mosaico chamado a paz do fogo (1997), Quatorze quadros redondos (1998), Chinês com sono seguido de clones do inglês (2005) e Poesia reunida: 1968-2021 (2021)

A edição da poesia reunida de Leonardo Fróes nos oferece a oportunidade de pensar sobre seu percurso literário e, ao mesmo tempo, sobre algumas das relações entre o fazer poético e seu devir na interpretação crítica. Sendo assim, a obra reunida, mediante revisão atenta do autor, nos estimula a observá-la como uma nova configuração estética. É possível retomá-la sem as molduras teóricas prévias (demarcadas em textos acadêmicos e/ou resenhas), que escutaram na voz do poeta ressonâncias estéticas historicamente consolidadas. Essas ressonâncias, por um lado, situam a poética de Leonardo Fróes entre as fronteiras da tradição lírica ocidental, na qual os dilemas individuais tensionam as relações com a tessitura social e o espraiar-se do poema na página coaduna-se com o fluxo de pensamento do sujeito. Por outro lado, é possível extrair dessas ressonâncias perguntas que a poética de Fróes endereça à tradição mencionada. Ou seja, quando ouvimos a voz de Fróes para além do cânone, o que conseguimos ouvir?

Uma possível resposta a essa questão depende da compreensão que tivermos da leitura em dispersão que Fróes estabelece para o mundo, como sugere a sequência “minha cabeça antes de tudo não é cabeça nem minha” (“Cabeça desfeita”). Essa perspectiva – segundo a qual o que eu sou depende do que são as outras formas vitais – instaura para o leitor a possibilidade da entrega a uma poética que, sendo algo, se desconstrói e se reinaugura com novos matizes. Trata-se, portanto, de uma poética fluida, que se desenvolve sob a forma de uma teia vigorosa e quase invisível. Uma teia que se desloca sob nossas sensações com raízes simultâneas de sentido, a exemplo da provocação estética e teológica dos versos “o que eu chamo de deus é bem mais vasto/ e às vezes muito menos complexo” (“Justificação de Deus”).

A essa figuração do poeta em processo de aprendizagem das leis fundamentais da natureza e do humano – como indicam os versos “Um animal passeia nas montanhas […]/ Sente-se disperso entre as nuvens,/ acha que reconheceu seus limites. Mas não sabe,/ ainda, que agora tem de aprender a descer” (“Introdução à arte das montanhas”) – entrelaçam-se, por uma fresta de significados recém-descoberta, figurações críticas e anticonvencionais similares àquelas propostas por Susanne Césaire em seus estudos sobre as reinvenções da estética surrealista na ambiência social, política e cultural do Caribe. Por aproximação, entrevê-se, na poética de Fróes, as movimentações de um “homem-planta” (e sua integração ao mundo de linguagens humanas e não humanas) e a expansão de uma epistemologia das lianas (em sua competente articulação de sentidos em meio à aparente desordem do cosmo florestal).

As noções de “homem-planta” e de epistemologia das lianas delineadas pelo pensamento revolucionário de Susanne Césaire não se restringem à lógica de conceitos que enrijecem e, por isso, diminuem sua capacidade de abarcar a mobilidade dos fenômenos estéticos e sociais. Tais noções, ao contrário, movem-se e rearticulam-se em diálogo com as oscilações da história e da natureza. Sob essa ótica, restringir a poética de Leonardo Fróes à esfera da simplicidade e da concretude – numa espécie de homenagem ao objetivismo da vida natural – vem a ser resultado de olhares que não acionam os múltiplos dispositivos da percepção crítica. Se os acionassem, esses olhares veriam na poética de Fróes – índice de uma natureza multiforme – um corpus iridescente, em expansão, que testa os limites da razão iluminista com a hipótese de uma razão alucinante. Não por acaso, o sono e o estado de consciência alterada – que perpassam versos como “os pastos do sono” (“Meia-noite no Bingen”) e se anunciam no título do livro Chinês com sono – foram, desde sempre, apreendidos pelo poeta como modos de saber.

Em face da crise da cultura na contemporaneidade, que afeta as propriedades da linguagem, reduzindo-a a slogans e soluções pragmáticas de enunciação, a obra poética de Leonardo Fróes escoa como um manancial de múltiplas perspectivas de pensamento e de experiências de afetividade. Para apreendê-la como um ato de recusa da banalidade do mundo é necessário vivenciá-la, primeiro, como um gesto inaugural. E aí reside uma de suas severas provocações: como podemos ser de um modo que nunca fomos antes, tanto no uso da linguagem quanto em nossas relações pessoais e sociais?

© Prisca Agustoni

Edimilson de Almeida Pereira é poeta e professor na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora. Publicou Entre Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma epistemologia de base afrodiaspórica na literatura brasileira (2017) e Poesia + antologia (2019). Sua obra de ficção inclui O ausente, Um corpo à deriva e Front – publicações de 2020.

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