Squirt, os livros em um livro
Por Edimilson de Almeida Pereira
21 de novembro de 2021
Telma Scherer é poeta, artista plástica e professora de literatura brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina. Publicou os livros de poesia Desconjunto (2002), Rumor da casa (2008), Depois da água (2014), O sono de Cronos (2019), Não alimente a escritora (2021); o livro híbrido Entre o vento e o peso da página (2018); e os romances Lugares ogros (2019) e As avessas (2021). Lançado em 2019, Squirt reitera uma das características marcantes da obra da escritora: o diálogo entre escrita, corporalidade e artes visuais. A partir disso, Scherer tem especulado sobre o caráter ético de sua obra, que alinha questões sociais e experimentalismo estético nas estruturas do poema e da narrativa.
Em Squirt, o título e a epígrafe apontam para a desafiadora e prazerosa tarefa de articular um livro em meio à infinitude de eventos da contemporaneidade. A palavra squirt (cujo significado em inglês é “esguicho, jorro”) faz menção à ejaculação feminina, tema complexo e ainda tratado (assim como o orgasmo) sob a ótica do tabu e do mistério, não da compreensão e do respeito aos direitos das mulheres. Por extensão metafórica, Scherer desdobra o squirt numa linguagem enigmática, crítica de certa consciência que subjuga a diversidade da linguagem e da sexualidade humanas a uma moral punitivista.
Os poemas tensionam as relações entre o sujeito desejante e as convenções sociais para demonstrar que, apesar destas, há “saídas de emergência” por onde é possível “ir e vir” levando o próprio corpo e pensamento. Na epígrafe extraída da biografia de Isadora Duncan, anuncia-se uma voz “de sombra e fogo” que envolve o outro e o mundo (“Vivo nua e mordo o que posso”). Essa voz nascida da intimidade, assim como o squirt, se multiplica em personalidades, ideias e imagens que se entrelaçam ao longo do livro.
A disposição formal dos poemas nos sugere três roteiros de leitura. No primeiro, considerando os textos isoladamente, destacam-se os poemas em prosa e outros como o de abertura (“Uma mulher tem dois seios/ e pode escrever sobre eles/ se ela quiser”) e o de encerramento (“Lamber/ a superfície das coisas/ entrar em comunhão/ com a textura do dia”). No segundo roteiro, nos deparamos com sete poemas em prosa; cada um deles funciona como um prólogo para a sua respectiva série de poemas em versos livres. No terceiro roteiro, temos a opção de ler em sequência os poemas em versos livres ou os poemas em prosa.
Essa arquitetura pode não ser percebida à primeira vista, uma vez que na edição de 2019 não há prefácio, posfácio ou notas tratando dessas questões. Contudo, uma vez apreendida essa arquitetura, notamos a complexa tecelagem formal e temática de Squirt. O caráter metalinguístico da abertura (“Uma mulher pode escrever enquanto/ os seios repousam na beira da mesa”) prenuncia os poemas que analisam a criação artística, a violência e o amor sem desconsiderar a pulsão erótica e a entrega emocional, como ressalta a voz poética: “Melhor pensar com o clitóris/ do que com esse coração/ que só sabe reclamar”.
Telma Scherer adensa nesse livro um procedimento que perpassa o seu trabalho com a pintura e a performance corporal. Ou seja, a poeta desestabiliza nossa relação habitual com os significados do mundo quando monta e remonta continuamente o fluxo de eventos ao nosso redor. Em Squirt, o uso objetivo da palavra (“Eu sou a mulher com a mão na boca”) e a disposição sem rebuscamento dos poemas não escondem os dilemas humanos, antes ressaltam a obscuridade do mundo onde “a saliva contamina/ o que flui nos sons da fala”. Tem-se, a partir disso, uma poética que procede da relação íntima entre a poeta, o outro e o incerto mundo onde “se samba até sem perna, sem braço, […] até sem samba”.
É, portanto, nessa atmosfera de dissonâncias e vertiginoso orgasmo que Squirt revela algo melhor em nós, mesmo que a festa esteja no fim e não saibamos se haverá alguém “para tirar o pó/ da manhã, depois”.
Edimilson de Almeida Pereira é poeta e professor na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora. Publicou Entre Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma epistemologia de base afrodiaspórica na literatura brasileira (2017) e Poesia + antologia (2019). Sua obra de ficção inclui O ausente, Um corpo à deriva e Front – publicações de 2020.