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O poema como um sismógrafo

Por Edimilson de Almeida Pereira

18 de novembro de 2022
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A poeta e editora Natália Agra nasceu em Maceió, em 1987. É, juntamente com Fabiano Calixto, Rodrigo Lobo Damasceno e Tiago Pinheiro, responsável pela revista de poesia Meteoro. Até o momento, lançou os seguintes livros de poesia: De repente a chuva (Corsário-Satã, 2017), fotogramas [o silêncio possível] (7Letras, 2019) e Noite de São João (Corsário Satã, 2020). Em 2019, Natália Agra publicou o livro infantil Os balões de Nise, na coleção Coco de Roda, pela Imprensa Oficial Graciliano Ramos.

O título Noite de São João alude, de imediato, a uma paisagem conhecida, na qual se destacam elementos de interações e conflitos culturais marcantes da sociedade brasileira. Não há como não recordar que na ambiência celebrativa dos santos juninos se entrelaçam elementos do catolicismo e de práticas sagradas das culturas populares. É, portanto, no tensionamento dessas referências culturais que se desenha uma vivência plural do sagrado e uma articulação lúdica do discurso acerca da entidade e seus devotos.

Ao retomar essa ambiência cultural, Natália Agra faz do poema uma espécie de sismógrafo que capta suas trepidações maiores e seus rumores imperceptíveis. O seu livro nos revela não mais uma devota que retorna à cena do milagre, mas, sim, uma poeta autocrítica que reinventa nas tramas da linguagem uma temporalidade feita, paradoxalmente, de perda e de dispersão: “todos ao redor desta fogueira/ buscam o calor do esquecimento”.

O poema inicial, conciso e com uma função quase de epígrafe, prenuncia um dos aspectos dominantes do livro: a relação – ora afetiva, ora tensa – entre uma persona individual e a comunidade a que pertence (“estou só com as ferrugens do passado” – “Amália”). Aliás, o poema-sismógrafo se esmera em registrar abalos de intensidade mínima, cujas ondas concêntricas se espalham pela memória que a poeta tem dos objetos, tal como demonstram os poemas minimalistas “Caixinha de música” (“o som do teu silêncio ainda me espanta”) e “Silêncio” (“a casa estava tão vazia que dava para ouvir/ o tique-taque de três relógios diferentes”).

Outro aspecto que desponta no registro, e depois na reinvenção poética dos eventos, é a projeção visual que extrapola a própria Noite de São João. Nesse caso, o que era uma imagem perdida entre outras é, no teatro da festa, recortado e remontado pela poeta como imagem autônoma. Veja-se que nesse processo a vivência do ato poético se resolve de maneira concreta na estrutura do poema: “cerejeira, companheira do vento/ os frutos de sangue/ não tocam mais as nuvens” – “Repouso”).

É interessante observar que, enquanto esses processos partem do contorno físico de um fato ou objeto, outro processo reflexivo permite à poeta talhar criticamente a medula dos valores intangíveis. Por isso, quando se refere a Deus, o poema-sismógrafo registra não a fé no intangível, mas a dúvida metafísica do sujeito devoto: “será que o reconheceria na rua?”.

Nos poemas longos, Agra expande esse processo, alcançando temas que vão além da celebração popular do santo católico. A ruptura dos liames do passado é um deles, tratado com lirismo e uma ponta sutil de melancolia: “sempre que retorno/ encontro as janelas cobertas/ o jardim vazio, as festas submersas/ no esquecimento/ de novo a criança soluça/ o silêncio absoluto da navalha” – “Evocação”).

Ao dividir Noites de São João em duas partes intituladas, respectivamente, “Fogo-fátuo” e “Reminiscências”, Agra compõe um micropoema a mais para o livro. Um micropoema que insinua uma hierarquização na tessitura do sentido. Ou seja, dentro do fulgor da noite celebrativa, há formas diversas de vida e de pensamento que oscilam para o ocaso, mas que, mediante o rigor estético da poeta, voltam a se incorporar à teia de nossa memória. Esse procedimento confere ao livro relativamente curto uma grande pulsão interior. À maneira de um relicário – que, sendo pequeno, concentra uma alta voltagem de representação do sagrado –, Noites de São João é um livro precioso, pois através dele é possível tatear, sem prender entre as mãos, aspectos do mundo que nossa consciência não se atreve a decifrar.

© Prisca Agustoni

Edimilson de Almeida Pereira é poeta e professor na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora. Publicou Entre Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma epistemologia de base afrodiaspórica na literatura brasileira (2017) e Poesia + antologia (2019). Sua obra de ficção inclui O ausente, Um corpo à deriva e Front – publicações de 2020.

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