“A PAZ ESTÁ INTERROMPIDA”: O INFERNO DA GRIPE
A paz está interrompida”, anuncia o jornal. Convidados em festas de casamento propagam o misterioso vírus em questão de poucas horas, a população é instruída a evitar aglomerações e a ficar em casa, abundam promessas de cura sem qualquer embasamento científico, falta caixão para tantos mortos e as autoridades escondem estatísticas. Parece 2020, mas não é. Estamos em 1918, ano em que a gripe espanhola se espalhou pelo mundo, vitimando milhões de pessoas, assim como o coronavírus. O impacto da gripe em Curitiba é narrado por Valêncio Xavier (1933-2008) em “O mez da grippe”, um dos livros mais inventivos da literatura brasileira, publicado pela primeira vez em 1981.
Inspirado pelos modernistas e dadaístas, Xavier compôs a narrativa a partir de anúncios de jornais, gravuras, obituários, letras de música, testemunhos e intervenções ficcionais salpicadas aqui e ali. Uma colagem poética que dá um novo sentido a histórias soltas. Em três seções — “Alguma coisa” (outubro), “O mez da grippe” (novembro), “A última letra do alfabeto” (dezembro) —, trata do fim da Primeira Guerra Mundial a crimes excêntricos que tinham destaque nos jornais, ainda que seu foco seja mesmo a chegada da gripe à capital paranaense.
O talento de Valêncio Xavier para a montagem reflete sua experiência em outra arte: a do cinema. Nascido em São Paulo, em 1933, e radicado em Curitiba, Trabalhou na realização de filmes como “Caro signore Fellini” (1979) e de programas de televisão como “Globo Repórter”. Foi um dos idealizadores da Cinemateca de Curitiba e esteve à frente do Museu da Imagem e do Som do Paraná (MIS-PR). Xavier era também jornalista, tendo colaborado com jornais como “Gazeta do Povo” e “Folha de S.Paulo”. Além de “O mez da grippe”, publicou “Desembrulhando as balas Zequinha” (1973), “O minotauro” (1985), “Meu sétimo dia – novela-rebus” (1998) e “Crimes à moda antiga” (2004), entre outros livros.
“Só se falla da epidemia. Mata se gente nos cafés, aggrava-se o estado dos enfermos nas esquinas, cream-se cifras de doentes, e só não se fazem sepultamentos por que o official do Registro reclama.
Peior pois, do que a grippe hespanhola, o que está nos matando é o boato. Acabemos com elle e terminará a grippe que de trocadilho em trocadilho, de pilheria em pilheria, está pela simples suggestão attirando com toda gente á cama.
CP [‘Commercio do Paraná’]”
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Trecho e imagens de “O mez da grippe”, de Valêncio Xavier, em nova edição da Arte & Letra. Publicado originalmente em 1981, a narrativa sobre o impacto da gripe espanhola em Curitiba, em 1918, é toda construída por meio de recortes de jornais, anúncios, gravuras, testemunhos e também intervenções ficcionais.
JOCA REINERS TERRON COMENTA “O MEZ DA GRIPPE”
“É uma história sobre a morte, mas também sobre a mentira promovida pelo Estado, no sentido de tentar controlar a população através da omissão dos fatos verdadeiros. E é também uma história que tem, em termos de ficção e literatura propriamente dita, uma novidade completa.”
Entusiasta da obra de Valêncio Xavier, o escritor Joca Reiners Terron destrinça “O mez da grippe” (1981). Terron destaca como a colagem gráfica feita pelo autor para narrar a chegada da gripe espanhola ao Brasil em 1918 faz a obra ser “totalmente única”. “Sem dúvida nenhuma é um clássico da literatura de vanguarda do Brasil. […] Duvido que haja coisas parecidas no mundo. É um autor que merece ser muito mais valorizado do que realmente é.”
Qual é a melhor maneira de ler “O mez da grippe”? “Inventivamente”, ele afirma. “Tem que ‘ler com os olhos livres’, como dizia Oswald de Andrade. Você tem que ler com muita liberdade. É um tipo de literatura que exige uma participação criativa do leitor.”
Terron conta ainda das diferentes leituras de “O mez da grippe” que fez ao longo do tempo: do primeiro contato com a obra, ainda na universidade, ao mais recente, em 2020, quando o contexto da pandemia do coronavírus reorientou sua percepção do livro.
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Joca Reiners Terron (@jocaterron) é escritor, e também editor, tradutor e designer gráfico. É autor de “Não há nada lá” (2001), “Do fundo do poço se vê a Lua” (2010) – vencedor do Prêmio Machado de Assis –, “Noite dentro da noite” (2017) e “A morte e o meteoro” (2019), entre outros livros.