ERA UMA VEZ: O INFERNO DE PINÓQUIO
“Não é possível imaginarmos um mundo sem Pinóquio”, dizia o escritor italiano Italo Calvino (1923 – 1985) a respeito do personagem clássico criado por seu conterrâneo Carlo Collodi (1826 – 1890). Boneco de madeira travesso que sonha em ser um menino de verdade, mas nem por isso está disposto a seguir as regras chatas do mundo adulto, Pinóquio chama a atenção para os perigos de algumas transgressões. “Os meninos desobedientes não podem ser felizes neste mundo”, avisa o Grilo Falante. Mas o alerta entra por um ouvido e sai pelo outro.
O resultado é que as aventuras nas quais o boneco se envolve trazem desfechos verdadeiramente infernais. Todas as vezes que se arrisca a fazer algo fora do convencional – da falta às aulas para brincar com os fantoches do titereiro Manjafogo à tentativa de enriquecimento com a ajuda de uma raposa e um gato pilantras, para citar apenas dois episódios – o boneco sofre punição: é enganado, agredido, roubado. Há ainda seu castigo mais conhecido: o nariz que cresce ao contar mentiras. “Há mentiras que têm perna curta e mentiras que têm nariz comprido”, observa a Fada, quando ele mal consegue se mover por causa do tamanho de seu nariz. Mas focar apenas na moral da história é perder de vista algo valioso. Pinóquio, assim como os humanos, é todo feito de ambiguidades, de luzes e sombras.
Pinóquio veio a público em 1881, quando a “Storia di un burattino” [“A história de um boneco”] saiu no jornal “Il Giornale per i Bambini”. Nascido em Florença, em 1826, Collodi havia participado das batalhas pela unificação da Itália e era conhecido por seus textos satíricos. Com Pinóquio, o autor, que havia vertido para o italiano os contos de fada de Charles Perrault, deu voz a um boneco inconformista, mas que pagava por cada uma de suas inconsequências. O personagem caiu nas graças do público. Enforcado em uma árvore ao fim da primeira novela, foi ressuscitado em 1882 para uma nova série de capítulos semanais, sob o título pelo qual a obra é hoje publicada: “As aventuras de Pinóquio”.
“É que nós, os meninos, somos todos assim. Temos mais medo dos remédios do que dos males.”
“— Meu pequeno, você vai se arrepender.
— Não me importa.
— A sua doença é grave.
— Não me importa.
— A febre vai carregar você em poucas horas para o outro mundo.
— Pouco me importa.
— Não tem medo da morte?
— Nenhum!… Antes morrer do que beber esse horrível remédio.
A esse ponto, a porta do quarto se escancarou e por ela entraram quatro coelhos negros como tinta, trazendo nos ombros um pequeno caixão mortuário.
— Que querem de mim? — gritou Pinóquio, erguendo-se cheio de medo para sentar na cama.
— Viemos te buscar — respondeu o coelho maior.
— Buscar-me?… Mas eu ainda não morri!
— Ainda não: mas te restam poucos minutos de vida, já que te recusaste a tomar o remédio que te curaria da febre.
— Ó minha Fada, minha Fada — começou então a berrar o boneco —, dê-me logo aquele copo. Depressa, por favor, porque não quero morrer, não, não quero morrer!
E, tomando o copo com ambas as mãos, esvaziou-o de um só trago.
— Paciência! — disseram os coelhos.
— Desta vez fizemos a viagem em vão. — E, pondo de novo o pequeno caixão sobre os ombros, saíram do quarto resmungando e murmurando entre dentes.
O fato é que dali a poucos minutos Pinóquio pulou da cama bom e curado; porque é preciso saber que os bonecos de madeira têm o privilégio de adoecerem raramente e de se curarem rápido.
E a Fada, vendo-o correr e brincar pelo quarto alegre e vivaz como um galeto ao primo canto, perguntou:
— Então meu remédio lhe fez bem de verdade?
— Mais que bem! Me fez voltar ao mundo.
— E então por que você se fez tão de difícil para tomá-lo?
— É que nós, os meninos, somos todos assim. Temos mais medo dos remédios do que dos males.”
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Trecho de “As aventuras de Pinóquio”, de Carlo Collodi, em edição da SESI-SP Editora; tradução de Ivo Barroso.
ISABEL LOPES COELHO COMENTA “AS AVENTURAS DE PINÓQUIO”
“O Pinóquio passa por esse desafio muito grande: para ser reconhecido como um ser social, ele tem que abandonar sua essência de brinquedo. E nesse sentido acho que tem um processo metafórico. A vida também é um processo de morte e renascimento a todo momento.”
Especialista em literatura infantojuvenil, Isabel Lopes Coelho dá uma verdadeira aula sobre “As aventuras de Pinóquio”. Em depoimento para a Megafauna, ela comenta as particularidades do personagem, o contexto de publicação do livro, bem como sua relação com a história literária e política da Itália.
Isabel, que estudou o clássico de Carlo Collodi no doutorado, analisa também a trajetória infernal do boneco de madeira rumo à sua transformação em um bom menino e destaca o que um personagem criado em 1881 ainda hoje nos ensina. “Nós temos várias infâncias, vários episódios, ou traumáticos ou felizes, que nos transformam. E eles também significam deixar para trás algumas coisas e abrir espaço para coisas novas.”
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Isabel Lopes Coelho, doutora em teoria literária e literatura comparada pela USP, é editora. Sua tese de doutorado será publicada pela Perspectiva sob o título “A representação da criança na literatura infantojuvenil: Rémi, Pinóquio e Peter Pan”. Trabalhou do Núcleo Infantojuvenil da Cosac Naify e atualmente é gerente editorial de projetos especiais e literatura na FTD Educação.
Reconhece o senhor do retrato? Você pode não identificar seu rosto, mas com certeza já ouviu alguma de suas histórias, como “A gata borralheira”, “Barba Azul”, “O gato de botas” e “O pequeno polegar”. Este é Charles Perrault (1628-1703), pai dos contos de fadas, que, ao lado de La Fontaine (1621-1695), pai da fábula moderna, estabeleceu na França do século XVII os fundamentos daquilo que viria a ser conhecido como literatura infantil.
Formado em Direito, viúvo e pai de quatro filhos, Charles Perrault foi quem primeiro registrou por escrito histórias populares da tradição oral. Transmitidas em reuniões familiares, tinham notório teor pedagógico. Na versão de Perrault, os contos apareciam em prosa e eram acompanhados por moralidades em verso ao final de cada um. Publicado em 1697, o livro “Contos da mamãe gansa ou Histórias do tempo antigo” caiu no gosto do público infantil e adulto. E assim segue até hoje.
As narrativas ganharam desde cedo traduções e reescrituras, com adaptações de acordo com a época e país em que eram publicadas. O italiano Carlo Collodi (1826 – 1890), por exemplo, antes de escrever “As aventuras de Pinóquio” (1893), traduziu as histórias de Charles Perrault. Por aqui, a influência do autor francês começou a ser notada a partir do fim do século XIX, em “Contos da Carochinha” (1894), do jornalista e cronista carioca Figueiredo Pimentel (1869-1914), obra considerada inaugural da literatura infantil no Brasil, e em “Contos de Fadas” (1934), tradução das histórias de Perrault por Monteiro Lobato (1882-1948).
[Charles Perrault, 1671 © RMN-Grand Palais]