A origem das espécies

A origem das espécies

Charles Darwin

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GUERRA DAS ESPÉCIES: O INFERNO NATURAL DE CHARLES DARWIN

Embora a abundância de seres vivos que aparecem em “A origem das espécies” (1859), de Charles Darwin, possa provocar um efeito de maravilhamento em quem o lê, a visão que o naturalista britânico tem da natureza é tingida por noções de competição e luta pela sobrevivência. Darwin olha para os seres vivos e enxerga a guerra, a matança, os desequilíbrios e o quanto existe de grotesco em um mundo que, muito longe de ser uma engrenagem perfeita criada por uma divindade benévola, é um lugar para lá de infernal. “Imagine que livro o capelão do diabo não escreveria sobre o trabalho desajeitado, desatinado, vil e terrivelmente cruel da natureza”, escreveu em uma carta de 1857.

Charles Darwin nasceu em Shrewsbury, na Inglaterra, em 1809. Passou sua vida dedicado às ciências naturais, sempre curioso por descobrir o que haveria por trás dos mistérios do mundo. Colecionou pedras quando criança e besouros quando adolescente. Quis ser geólogo quando se formou na faculdade, em Cambridge, em 1831, e no mesmo ano embarcou no navio Beagle, que o levaria para uma volta ao mundo, durante a qual passaria pelo Brasil.

Darwin era um homem que tinha medo de suas próprias ideias. Formulou sua teoria da seleção natural na década de 1830, e confessou a um amigo que revelá-la seria como “confessar um assassinato”. Passou vinte anos amadurecendo sua teoria revolucionária e tateando, com muita timidez, o mundo científico de Londres, para aferir se já teria um clima cultural receptivo ao seu pensamento. Hoje, a seleção natural, ou descendência com modificação, é um consenso na comunidade científica, além de base fundante da biologia moderna. No entanto, em um cenário de crescente negacionismo, em que princípios básicos das ciências são cada vez mais contestados sem qualquer embasamento, nem a teoria de Darwin está a salvo. Em 2020, fazer ciência ainda pode ser um inferno.


"Todos vivem em luta"

“Na observação da natureza, é de suma importância não esquecer que cada um dos seres orgânicos ao nosso redor está em constante empenho de multiplicação; que todos vivem em luta, em algum período de sua vida; que uma pesada destruição necessariamente se abate, sobre os jovens ou sobre os velhos, em cada geração ou em intervalos recorrentes: que uma restrição seja amenizada, que uma destruição seja mitigada, e o número de espécies irá aumentar instantaneamente. A face da natureza pode ser comparada a uma superfície de fluência, com dez mil cunhas afiadas, umas ao lado das outras, e afundadas por golpes incessantes, que ora atingem uma cunha com mais força, ora outra.”


PEDRO PAULO PIMENTA COMENTA “A ORIGEM DAS ESPÉCIES”

“É um livro tenso, que tem uma prosa nervosa. Quando a gente lê, tem essa vibração da sensibilidade do autor, o que faz dele um grande livro do ponto de vista literário.”

Tradutor de “A origem das espécies”, Pedro Paulo Pimenta comenta de que forma o contexto da escrita produziu reflexos no grande livro de Charles Darwin. Doutor em filosofia, Pimenta  observa que o naturalista britânico desmistificou uma visão ingênua da natureza como ordem estática, encerrada em si mesma, ao defender a ideia de um equilíbrio dinâmico e complexo do qual nós humanos fazemos parte. 

Pimenta analisa ainda a interseção entre natureza e política, e faz um alerta para a gravidade dos atuais ataques às instituições de pesquisa.

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Pedro Paulo Pimenta é doutor em filosofia pela USP, onde  hoje é professor livre-docente. Dedica-se a estudos sobre as relações entre filosofia e história natural nos séculos XVIII e XIX. Além de Charles Darwin, traduziu autores como Gibbon, Hume, Diderot e D’Alembert.


A relação de Darwin com o Brasil foi ambígua. Quando passou pelo país, em 1832, a bordo do navio Beagle, ele se encantou com a biodiversidade, mas ficou horrorizado com a escravidão. Darwin vinha de uma família radicalmente antiescravagista e seus avós haviam inclusive participado ativamente de movimentos abolicionistas. O naturalista afirmou que os sons de escravizados sendo torturados nunca abandonaram sua memória. Já Robert FitzRoy, que comandava o Beagle, era um defensor do modelo escravocrata e dizia acreditar na benevolência dos senhores de escravos, o que provocou a única briga verdadeira entre os dois. Darwin e FitzRoy jantavam quando o capitão comentou ter presenciado um episódio no qual um senhor perguntou a seus cativos se gostariam de ser livres e todos teriam respondido que não. Darwin questionou o valor de uma resposta dada sob coerção, e um FitzRoy furioso disse que ele não era digno de se sentar à mesa do capitão. Darwin se levantou na mesma hora e foi jantar com os outros tripulantes. Dias depois, FitzRoy pediu desculpas e os dois voltaram a conviver pacificamente.

Essa não foi a única manifestação de desumanidade de FitzRoy. Numa viagem anterior, de passagem pela Terra do Fogo, o capitão sequestrou indígenas, que se tornaram pequenas celebridades em Londres. FitzRoy os levou de volta à sua terra natal na segunda viagem do Beagle e surpreendeu-se com o fato de que eles abandonaram as roupas e os costumes ingleses quando reencontraram pessoas de suas próprias culturas. Um desses indígenas, que recebeu o nome de “Jemmy Button” (“Jaime Botão”), por ter sido comprado de sua família pelo preço de um botão de madrepérola, teve sua história contada em “O botão de pérola” (2015), documentário de Patricio Guzmán.

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A história da briga é contada no episódio “Um navio com nome de cachorro (pt.2)”, do Vinte Mil Léguas, podcast produzido pela Quatro Cinco Um em parceria com a Megafauna e com apoio do Instituto Serrapilheira. 

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[Capitão FitzRoy em ilustração de Augustus Earle publicada em “Narrativa das viagens exploradoras dos navios de Sua Majestade Adventure e Beagle”, 1839 © The British Museum]


Publicado em 1859, “A origem das espécies”, de Charles Darwin, virou um best-seller, esgotando imediatamente. O livro alcançou não apenas os círculos científicos, como também a população em geral — a Inglaterra vitoriana tinha um dos melhores índices de alfabetização de toda a Europa. Logo entrou para o debate público e exerceu influência de diversas maneiras. Na literatura, influenciou “Os bebês da água” (1863), fábula de Charles Kingsley, “As aventuras de Alice no país das maravilhas” (1865), de Lewis Carroll, e “A guerra dos mundos”, de H. G. Wells (1898). Mas um dos autores cuja obra mais fez ressoar o pensamento darwiniano foi George Eliot (1819-1880), pseudônimo da escritora Mary Anne Evans. Eliot acompanhava o debate científico da época, inclusive atuando nele como crítica e ensaísta reconhecida, e seus romances são pequenos experimentos sobre o desenvolvimento de indivíduos da espécie humana em constante luta contra o meio. Em “Silas Marner: o tecelão de Raveloe” (1861), por exemplo, ela narra, como se fosse com uma lupa, o que acontece com um homem que perde tudo e, em seguida, faz de tudo para enriquecer, enquanto tenta a todo custo ignorar os sinais do ambiente onde vive.

[George Eliot por Sir Frederic William Burton © National Portrait Gallery]


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