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Poesia reunida

Por Maria Lúcia Alvim

11 de setembro de 2024
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Estes poemas do livro Poesia reunida foram gentilmente cedidos pela Relicário para o Anuário 2023 da Megafauna.


PENÉLOPE

Tudo que vi
àquele bordado
prendi

Tudo que sei
ficou de lado
passei

Tudo que sinto
é simulado
minto

Tudo que penso
é mastigado
infenso

Tudo que sonho
é emaranhado
bisonho

Tudo que amei
por adiado
cansei

Tudo que fiz
desfiz por querer
(Rabo do olho, 1992 – livro inédito)


DANÇA DOS ESPÍRITOS BEATOS

A navalha. O Verbo. O movimento
O Menino de barba crespa e basta.
O Cavalo-Marinho (aquele passe
de nunca ser tomada de surpresa!)
Grávido de mim. Quem? Senão a Ti
faria? Onde o Mal, em tal sacrifício?
A tua cabeleira negra e casta.
Os meus cabelos tesos e metálicos.
Chamamos pelo nome esse pecado
Amor: — penetra fundo na palavra
e reboa no ar: Amaldiçoado!…
E quanto mais te ouço mais me encorpo
cerzida ao teu Corpo, que é meu corpo,
que não vejo, não cheiro, que não toco.
(A rosa malvada, 1980)


NOITE DE GALA
[Série “Tapa de luva: poemas de meu irmão”,
pastiche de Francisco Alvim]

Um país inteiramente nu
Pelo tempo que estamos aqui sentados
Um país que não houvesse
Nem pai nem mãe
Sem sobrenome
(A rosa malvada, 1980)


FÁBULA

A terra traz o ventre trepidante
a fecundar, parir, a sepultar —
a fronte prepotente a ostentar
a grinalda de vermes cintilantes.
A terra é o animal pensante — diante
da própria sombra para a conspirar —
das feras tem o olfato e o paladar
e dos homens a espora penetrante.
— Sementes? São caixeiras-viajantes
de ilusão a ilusão, a germinar.
As raízes são falsas postulantes
e a seiva suculenta faz golfar
não só flores, falcões e diamantes
mas dilúvios, leões, rinocerontes.
(Romanceiro de Dona Beja, 1979)


TÍMIDA CONFIDÊNCIA
DE UM POEMA

Em tudo há um sentimento
Vigilante
que procura vir à luz do dia —
raro nos é dado
saber quando
devemos acender-lhe a boca fria.
É por isso que vamos ficando
cada vez mais fechados —
covardia
ou surdo magnetismo
palpitando
entre o que fala e o que silencia.
(Pose, 1968)


CARTÃO POSTAL
                                                   para Chico

Repente de tarde. Plana. Ceifada.
Âncoras amortecem o peso
e se liquefazem.
Apagam-se ruivos outeiros.
Dois namorados olham o mar.
Um pássaro de insólito voo
roçou-lhes o ombro.
— Seremos assim potentes?
E subitamente puseram-se
a ferir-se a ferir-se
                                 a ferir-se
(Coração incólume, 1968)


POEMA SATURNIANO

I
Ferimos e somos feridos
— sob mares avulsos
marinheiros de
ondulantes patins
semeiam naufrágios.

II
De pai para filho
de irmão para irmão
de igual para igual
— o mal
possui os olhos grandes da
complacência
em cuja pupila
um dia
nos perdermos.

III
Na fúria de ferir
iluminados,
celebramos — efusivamente
abraçados — nosso
aniversário.

IV
Há pássaros voando no ar contaminado
Mecanicamente
braços envolvem cinturas
pesadas de indiferença.

V
Na primavera
distribuiremos pêsames
como pétalas de rosas.
(Coração incólume, 1968)


XVIII
Verbena (mas coisa vã)
imponderável alfaquim
numa imatura manhã
em breve azul de calim
talvez precária e malsã
quase prenúncio de mim
olho tangido (avelã)
implacável serafim.
Fora tempo infância — agora
grave sucinto demora —
e tudo se faz silente
sonhos ou canto de ausente
instantes resvalam onde
o verso acode e responde.
(XX sonetos, 1959)