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Sr. Loverman

Por Bernardine Evaristo

12 de março de 2024
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Este capítulo do livro Sr. Loverman foi gentilmente cedido pela Companhia das Letras para o Anuário 2023 da Megafauna. Sr. Loverman tem tradução de Camila von Holdefer.

A arte de emudecer

14 de setembro de 2010

Então aqui estamos nós, no final da manhã, no meio da semana, lendo sossegados, em paz, em harmonia, na mesa da cozinha, cerca de uma hora antes da nossa expedição a pé até Dalston pra comer alguma coisa, quando ouço a chave girar na fechadura, e adivinha quem entra pela porta da frente com a Donna a tiracolo, arrastando o tipo de mala de que os imigrantes mais gostam, do tamanho de um homem?

Deus-Todo-Poderoso, o que é que aconteceu com a patroa? Mal reconheço ela.

À medida que se aproxima do infame corredor que testemunhou vários dos dramas dos Walker ao longo das décadas, noto que ela não só anda um pouco mais reta como manca bem menos.

Além do mais, alguém pegou um martelo e um cinzel e começou a desbastar a forma anterior dela, porque a mulher que estava escondida por baixo começou a aparecer.

Os olhos dela parecem maiores, luminosos, brilhantes.

O rosto tá suavemente bronzeado, bastante radiante. São maçãs do rosto de verdade que estão aparecendo?

Quanto ao cabelo. Que negócio. Quando conheci a Carmel, o cabelo dela era produto de um pente de ferro quente; à medida que envelhecia, ela o tingia; e quando começou a ficar ralo antes do tempo por causa de tudo o que ele passou, ela começou a usar perucas.

Agora olhe pra ela: au naturel, e, devo dizer, tá bonito pra caramba: lindos cachinhos acinzentados dando forma à sua cabeça.

Sim, de fato combina com ela. A patroa tá elegante, também parece mais jovem.

Fico de pé quando ela entra na cozinha vestindo um cafetã branco esvoaçante com strass azuis bordados e calças de linho branco que balançam sobre um par de sandálias de lona com salto plataforma. Salto?

Ela tá usando uma pulseira turquesa e brincos em forma de gota de chuva? Batomesmalte?

O que aconteceu com aquelas calças de náilon horrendas com meia-calça por baixo? Cê podia ouvir ela a um quilômetro de distância, com todo aquele atrito e chiado.

Do jeito que ela tá agora, eu podia passar por ela na rua e nem reconhecer.

E desde quando ela usa bolsas de ombro? As bolsas da Carmel sempre foram inspiradas nas da rainha.

Não detenho o Morris quando ele se despede, de forma silenciosa, diplomática, pegando os dois romances (homem sábio) no processo.

Eu e ela nos encaramos.

Eu de pé perto da janela, ouvindo a chuva respingar no vidro, me perguntando se a Carmel vai me jogar por ali.

A Carmel me observando observá-la, curtindo meu espanto enquanto assimilo seu eu recém-renovado.

Ela não parece zangada, não parece magoada. Ela parece… confiantemagnífica.

Venho ensaiando meu discurso há tanto tempo, mas a ideia de pronunciar ele…

Não é dessa pessoa que pensei que estaria me divorciando. Quem é essa pessoa?

Donna, vestida com um terninho preto elegante de trabalho, assumiu a posição de sentinela e está bloqueando a porta da cozinha.

Ela devia cair fora porque realmente preciso ter um entre nous com a mãe dela.

Como se a Carmel pudesse ler minha mente, ela diz, “Agradeço sua ajuda, mas cê pode nos deixar a sós agora, Donna. Consigo encarar esse aí”.

O quê? Ela vai me encarar?

“Certo”, o cão de guarda dela murmura com relutância, como se não quisesse perder o drama. “A gente se vê mais tarde.” Ela vai até a mãe e lhe dá uma bitoca na bochecha.

Quando sai, me lança um sorriso afetado que insinua que vai voltar pra ajudar a mãe a embalar as partes do meu corpo em sacos de lixo pretos e me enterrar no jardim na calada da noite.

Neste momento percebo que estou encurralado, porque, se a Carmel decidir puxar uma faca pra mim, tem uma mesa de cozinha gigantesca bloqueando minha saída.

Só que isso também é estranho. A Carmel não parece pronta pra servir meus intestinos.

“Senta aí, Barry.”

Obedeço, e ela assume posição na extremidade oposta da mesa, toda ereta.

“Cê parece bem, Carmel.”

Isso é subestimar, cê não acha?”

“Hã, sim… Cê sem dúvida tá esplen…”

Sei como estou, Barry. Não preciso que cê me diga nada. Agora, isso é o que vou dizer a você…”

Ela me olha com atenção, com isso tô acostumado, porém não é ressentimento o que está emanando dela, é outra coisa. Pena? É pena o que ela tá sentindo?

“Carmel”, digo, percebendo que é melhor eu começar meu discurso antes do dela, “sei que você não tá feliz há algum tempo. Nós dois nos sentimos solitários neste…”

“Barry”, ela diz, me interrompendo, “cala a boca.”

Espera que eu pareça devidamente admoestado.

“Agora, ao contrário das suas suposições, estou bastante satisfeita, o que é inusitado.”

Ela não se apressa, brinca com as pulseiras nos pulsos. As unhas turquesa são longas, bem lixadas, manicuradas.

O que será que ela tá tramando?

A chuva agora tá batendo na janela, sinalizando que o verão nos deixou e que o inverno não tá longe.

“Depois do funeral, fiquei pra resolver os negócios do papi. Ele deixou tudo pra mim, a filha única dele. Não se preocupe, o meu advogado tá se livrando daqueles abutres.”

Ela chupa os dentes e não tá nem aí, acabando com a nova imagem dela.

“Por falar em advogados, voltei pra encerrar minha vida aqui e começar uma nova por lá. Sim, cê não tava esperando por isso, tava? A primeira coisa que tenho que fazer é ‘arranjar um advogado’, como diz a Donna, porque tô dando início ao processo de divórcio e isso não vai sair barato pra você.”

Ela tira a aliança de casamento, que, como ela está mais magra, sai com facilidade. A aliança é arremessada na mesa e sai rolando como uma roda, caindo morta bem na minha frente, onde deixo ela.

“Reencontrei a Odette lá e, como cê vive dizendo, quando as mulheres se juntam, elas se queixam.

“Ela me disse que tenho que perdoar, do mesmo jeito que ela perdoou. A falta de perdão é o veneno que cê bebe todos os dias, esperando que a outra pessoa morra, ela ficava me lembrando. Bem, tô me esforçando pra isso. Sim, tô me esforçando pra isso porque cê tem a doença em você e por esse motivo cê não consegue se controlar. Mas é difícil, Barry. É tão difícil porque, do jeito como eu vejo, passei cinquenta anos da minha vida iludida pela sua farsa. Deixando escapar todas as evidências que tavam bem na minha cara. Passei por maus bocados lá, Barry, ao perceber que minha vida adulta foi desperdiçada. A Odette disse que cê me deu duas filhas, então não foi desperdiçada, mas ela tá errada.

“Aqui tá outra coisa que descobri: cê já tava sendo alvo de comentários desde que tava na escola. Ainda bem que cê casou comigo quando isso veio à tona, mas foi justamente por isso, não? Cinquenta anos com um homem que me usou como fachada pra esconder o negócio nojento dele, fazendo troça de mim. Como cê acha que isso faz eu me sentir?”

Ela se levanta sem aquela respiração pesada e ofegante de costume, pega um copo de água pra beber. Carmel? Água?

“Cê vê, Barry. Não sou solitária, não mais. Então não vem me dizer que sou. Lembra do Hubert da escola? Claro que sim, porque cê me roubou dele. Bem, ele tá de volta na minha vida e a gente tá se dando muito bem. Mais que bem. Cê tá chocado de novo, hein? Ele conseguiu um doutorado na Universidade Howard em Washington, onde se tornou um professor de matemática. Ele também não é um magricela de dezesseis anos. Ele é mais alto que você, mais magro que você, mais bonitão e também não é careca.”

Ela registra tudo o que o rosto — que, agora estou convicto, mostra tudo — deixa transparecer.

“Vou voltar pra ele. Minha vida aqui tá encerrada. Não se preocupe, não tô no ramo de lavar roupa suja pra fora. De que isso vai me adiantar, hein? Que todo mundo saiba que fui uma idiota?

“A Donna tá tirando quinze dias de folga do trabalho pra me ajudar com tudo. Vou estar aqui todos os dias a partir das dez pra começar a separar as coisas, e não quero ver nem sombra sua. Vou enviar os empacotadores na próxima semana e também não quero cê aqui. Não se preocupe, não vou saquear a casa que representa meio século de sofrimento.

“Quanto ao disco do Jim Reeves que você tanto despreza? Mesma coisa. Mal posso esperar pra dar umas marteladas nele. Cê tem sorte de eu não te dar umas marteladas, mas cê não vale uma sentença de prisão perpétua. Eu já cumpri minha pena.

“Não quero ver ou falar com você outra vez, a menos que conteste o divórcio, o que cê não vai fazer.”

“Carmel, Carmel, querida, eu…”

“Cala a boca. Cê é um homem doente, Barry, e a única pessoa que pode ajudar você agora é Deus.”

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