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Elogio da perturbação

Por Gustavo Pacheco

27 de agosto de 2023
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“Existem aqueles que deixam os outros em paz e aqueles que perturbam e irritam, categoria à qual pertenço.” A frase é do escritor austríaco Thomas Bernhard, mas poderia ser do narrador de O seu terrível abraço (Todavia, 2023), que não deixa absolutamente ninguém em paz, a começar por ele mesmo.

Ao terminar as 147 páginas do segundo romance de Tiago Ferro, temos a sensação de ter saído de uma espécie de montanha-russa em que acompanhamos o narrador em incontáveis idas e vindas dentro da história brasileira recente, dentro de si mesmo e dentro do próprio texto que escreve. Ou talvez seja mais exato pensar num trem-fantasma, porque o que não falta no livro é assombração – espectros pessoais e coletivos, sociais e culturais, passados e presentes. Ou talvez seja melhor não usar essas metáforas, porque, embora a gente se empolgue e se divirta com a adrenalina, os sobressaltos provocados pelo livro não são esquecidos tão facilmente quanto os sustos que a gente leva num parque de diversões.

O narrador de O seu terrível abraço é um escritor branco, paulistano e quarentão que enfrenta uma doença terminal enquanto faz um acerto de contas com sua vida, sua geração, sua classe social e seu país. Mas esse resumo tosco não faz jus à maneira brilhante como o livro é construído, a partir de fragmentos que se sucedem sem encadeamento aparente, dando grande saltos no tempo e no espaço para ir do mais banal ao mais pungente. Num momento, lemos algo como: “Minha avó quebrava a bala Soft sem abrir o plástico transparente com o martelo de carne sobre a pia pra eu não engasgar. Ela cuidava do filho como só quem saltou uma geração em relação ao descendente é capaz de fazer, a mesma dedicação e atenção para os detalhes de um serial-killer”; em outro momento, nos deparamos com frases como essas: “Comento com o porteiro que seguir votando no Bolsonaro depois do mandato desastroso era o mesmo que apoiar o Hitler após o bombardeio de Dresden. Ele me pergunta quem é Hitler”; mais adiante, encontramos: “Me encaro no espelho por tanto tempo que vejo como será minha expressão no meu próprio velório”.

São muitos fragmentos, de tamanhos variados, que mudam bruscamente de assunto de um para o outro, e também dentro de cada um. É uma forma estranha, mas não mais estranha do que o mundo que ela reflete. Ao contrário do que possa parecer, essa acumulação vertiginosa de fragmentos resulta num livro com forte unidade, que seduz o leitor de maneira quase hipnótica. Boa parte dessa sedução se explica pela linguagem enxutíssima e sem firulas e, sobretudo, pelo olhar implacável sobre tudo e todos; aqui não há meias palavras, não há niilismo autoindulgente, não há literatura “bem feita”, o que há é uma honestidade absoluta e perturbadora.

Tiago Ferro estreou na ficção com o devastador O pai da menina morta. Uma vez, eu estava numa livraria e ouvi duas senhoras dizendo que jamais comprariam um livro com esse título. Não escutei o resto da conversa, mas posso intuir as razões por trás do comentário: um livro desses certamente não será algo que a gente lê para se distrair, para relaxar nas férias, para esquecer das mazelas da vida. Para que gastar dinheiro num romance com esse título tão incômodo, se já há tanto incômodo na vida?

Não há nada errado em ler para se distrair ou fugir do cotidiano, mas, como diz o clichê, que não é menos verdadeiro por ser clichê, a arte não serve só para dar conforto aos que estão perturbados, mas também para perturbar os que estão confortáveis – e não é qualquer artista que consegue perturbar como Tiago Ferro. Se, como dizia Tchékhov, a grandeza da arte reside no fato de que ela não admite a mentira, O seu terrível abraço preenche com folga os requisitos para ser grande.

© Maria Mazzillo

Gustavo Pacheco é escritor, tradutor e codiretor da  revista Granta em língua portuguesa. Seu livro de contos Alguns humanos (2018) ganhou o prêmio Clarice Lispector da Fundação Biblioteca Nacional. Traduziu para o português obras de Roberto Arlt, César Vallejo, Julio Ramón Ribeyro e Patricio Pron.

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