Buscar
0

Sem um pouco de ficção não dá para viver

Por Gustavo Pacheco

2 de julho de 2023
Compartilhar

Nesta coluna, comento livros de ficção. Parece simples, não é? Mas a palavra ficção simplesmente não dá conta de alguns dos livros mais poderosos e surpreendentes escritos nos dias que correm – livros que, além de não se encaixarem em nenhuma classificação, acabam desmoralizando as próprias categorias que usamos para falar de literatura. É o caso do recém-lançado Saia da frente do meu sol (Autêntica Contemporânea, 2023), de Felipe Charbel.

Sou fã do Charbel desde que li Janelas irreais (Relicário, 2018), combinação original e interessantíssima de diário literário e ensaio pessoal e vice-versa, que teve muito menos leitores do que deveria. Com Saia da frente do meu sol (que título maravilhoso) ele nos dá algo ainda melhor, mais original e mais pessoal.

Anos atrás, Charbel começou a escrever a história – ou melhor, a “biografia especulativa” – de seu falecido tio Ricardo, sobre quem sabia pouco ou quase nada. E aí começaram os problemas: “Meus dias de biógrafo foram breves. Primeiro achei que a vida do meu tio dava uma novelinha; depois achei que não dava uma novelinha, mas talvez desse um conto, então achei que dava mesmo um conto, mas que ele teria de se parecer com um ensaio”.

Essa indecisão de gêneros tinha a ver não só com a escassez de documentos e informações sobre o tio (“tudo na história de Ricardo era espaço em branco”), mas também com algo mais difícil e mais sutil: a tentativa de encontrar uma forma literária que estivesse à altura do imbricamento inevitável entre biógrafo e biografado (“falando dele, é de mim que falo”). A forma afinal encontrada por Charbel é um amálgama pungente e deliciosamente anárquico de biografia, autobiografia, história, memória, arquivo, diário, ensaio, fotografia, crítica literária – e, é claro, ficção.

O que encanta no livro não é apenas a absoluta falta de cerimônia com que o narrador mistura tudo isso, passando de um registro a outro de forma quase imperceptível, mas sobretudo a sensação de urgência, de que era preciso desesperadamente contar essa história, e mais: de que ela precisava ser contada assim, desse jeito. É essa urgência que praticamente obriga o leitor a virar as páginas, fascinado com o narrador que é inteligente sem ser condescendente, implacável sem ser arrogante, afetuoso sem ser meloso.

A certa altura, o narrador imagina as palavras que o tio teria dito no enterro do pai, para logo em seguida comentar: “Risco a frase, acho piegas. Ponho de volta. É um momento duvidoso esse aqui: pôr na boca do tio as palavras que, sessenta e tantos anos depois, no mesmo cemitério, eu diria a meu pai. A frase fica”. Esse é apenas um dos muitos momentos em que o livro esculhamba as fronteiras entre o que é ficção e o que não é, aceitando com naturalidade a constatação de que, tanto nos livros como fora deles, e para citar novamente o narrador, “sem um pouco de ficção não dá pra viver”.

Em suma, a praia de Felipe Charbel é a confluência entre a própria vida e a vida alheia, filtrada por muitos anos de leituras atentas e traduzida numa linguagem sem qualquer gordura nem autocomplacência, uma linguagem que transforma qualquer experiência, até as mais banais, num deleite para quem lê. Essa praia é a mesma de Annie Ernaux e de Emmanuel Carrère, para mencionar apenas dois grandes autores contemporâneos, e é uma grande alegria encontrar um escritor brasileiro vivo e ativo passeando nesse balneário.

Agora é torcer para que os jurados dos prêmios literários deixem a preguiça e a má vontade de lado e façam jus a esse livro que merece ser premiado na categoria romance, ou na categoria ensaio, ou na categoria biografia, ou em todas elas juntas.

© Maria Mazzillo

Gustavo Pacheco é escritor, tradutor e codiretor da  revista Granta em língua portuguesa. Seu livro de contos Alguns humanos (2018) ganhou o prêmio Clarice Lispector da Fundação Biblioteca Nacional. Traduziu para o português obras de Roberto Arlt, César Vallejo, Julio Ramón Ribeyro e Patricio Pron.

Livros relacionados


Outros textos do autor

Quero ser André Sant'Anna

27 de outubro de 2023
Ver mais

De como o pecado, além de todas as suas outras virtudes, ainda produz bons livros

4 de outubro de 2023
Ver mais

Aquarela do Plazil

14 de setembro de 2023
Ver mais

Elogio da perturbação

27 de agosto de 2023
Ver mais

Quadros de uma exposição

30 de julho de 2023
Ver mais

Histórias do agora (para serem lidas agora)

4 de junho de 2023
Ver mais

Um contista valente

7 de maio de 2023
Ver mais

Um balaio de sonhos

9 de abril de 2023
Ver mais

É melhor não caçar sozinho

12 de março de 2023
Ver mais