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As incoerências do futuro

Por Stephanie Borges

16 de abril de 2023
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Árduo amanhã, de Eleanor Davis (Tordesilhas, 2022, tradução de Érico Assis), se passa num futuro distópico em que os Estados Unidos são governados pelo presidente Zuckerberg, o que só aumenta a suspeita de que as redes sociais sejam usadas para monitorar a população. Respeitam-se cada vez menos os direitos humanos, manifestantes pacifistas são tratados como inimigos da pátria. A mudança climática, como hoje, ameaça de extinção plantas e animais. Paira um clima de paranoia. Neste cenário inóspito, a protagonista Hannah cultiva o desejo de ser mãe.

Considerada a melhor graphic novel de 2020 pelo LA Times Book Prize, Árduo amanhã acompanha um período na vida de uma mulher de trinta e pouco anos que se divide entre sonhar e agir para tornar o mundo um lugar melhor. Hannah vive com Johnny em um acampamento improvisado, numa clareira na floresta, onde os dois começam a construir uma casa para levar uma vida simples junto à natureza.

Enquanto ela trabalha como cuidadora de idosos e participa do coletivo Humanas Contra a Violência (HCV), ele passa o tempo fumando maconha e pesquisando sementes e técnicas de construção. Embora critique a falta de iniciativa do namorado, que faz inúmeras promessas e não as cumpre, Hannah acredita que um filho seria um estímulo para que ele se tornasse um sujeito confiável. Se, por um lado, o ativismo e o investimento em um lar e em uma família a movem, por outro, suas expectativas em relação às pessoas são fonte de frustração.

Hannah, ao mesmo tempo que pretende ter um filho com um homem que não parece interessado em assumir responsabilidades, alimenta uma relação platônica com sua amiga Gabby. Companheiras de manifestações e militância política, as duas se divertem e cuidam uma da outra. Johnny sente ciúme de Gabby, que por sua vez não entende como uma mulher que lhe dedica tanto carinho e atenção só consiga se imaginar num relacionamento heterossexual e com filhos. A intimidade entre as duas se torna difícil para Gabby, que se apaixona mas não é correspondida.

A trama de Árduo amanhã é simples. Após manifestações contra o uso de armas químicas, aumenta a perseguição a ativistas e a líder do HCV, Eun-ha Kim, é presa e ameaçada de extradição para a Coreia do Norte. A HCV organiza um protesto em defesa dos manifestantes presos e enfrenta dura repressão. Quando o governo decide tratar movimentos sociais como ameaças à segurança nacional, surgem diferentes desafios para cada integrante do grupo. Quem não enfrenta o risco de ser preso ou deportado pode figurar numa lista de radicais inimigos do Estado e ficar sem trabalho. O medo provoca a desmobilização do coletivo. Hannah precisa fazer escolhas e lidar com mudanças inesperadas em vários âmbitos de sua vida.

Os personagens do coletivo — imigrantes, judeus, negros e pessoas queer — se empenham na construção de um futuro melhor baseado na cooperação, mas também são figuras vulneráveis devido ao preconceito e à desigualdade social. E um dos grandes trunfos da arte de Davis está no uso das imagens para acrescentar sutilezas ao texto, como nos momentos em que as telas de celulares e computadores trazem informações que ajudam o leitor a contextualizar o clima de incerteza que permeia a história.

A densidade da narrativa está na aposta de que as relações humanas são fundamentais para que o futuro seja menos tenebroso. Com personagens cativantes e contraditórios, o roteiro evidencia a complexidade das amizades, da vida amorosa e da luta política. Hannah e Gabby acreditam na importância de sua organização antifascista, mas se deparam com pobres prejudicados pela ação dos black blocs. Johnny, embora avesso à violência, mantém amizade com Tyler, um solitário misógino, colecionador de armas e adepto de teorias da conspiração.

Ainda que Hannah e Tyler não gostem um do outro, ele é o único a ajudá-los na construção da casa. Johnny minimiza os traços desagradáveis do amigo, sempre a discorrer sobre a suposta inferioridade das mulheres e a existência de drones assassinos controlados pelo Facebook. É a confiança de Tyler em suas convicções que o leva a uma morte tragicômica.

Árduo amanhã capta muito bem a ansiedade de uma geração de adultos que está diante de grandes desafios coletivos enquanto tenta encontrar a própria felicidade. Para que exista um futuro, a crise climática e a ascensão de regimes autoritários precisam ser combatidas ao mesmo tempo que se trava a luta pela sobrevivência cotidiana. Alguns reagem como Hannah, que dedica sua energia a diferentes projetos, outros, como Johnny, se mostram apáticos. Davis não julga seus personagens. Há momentos em que os amores e as amizades são fonte de alegria e consolo, assim como outros em que são os mais íntimos que despertam as maiores mágoas.

Davis encerra sua HQ lembrando que, em meio às incertezas, não há uma única forma de tentar melhorar o mundo. É preciso fazer apostas sem ter garantias. E talvez o amor seja o ingrediente indispensável a qualquer futuro que estejamos dispostos a criar.

© Gabriella Maria/Afroafeto

Stephanie Borges é escritora. Seu livro de estreia, Talvez precisemos de um nome para isso, venceu o IV Prêmio Cepe Nacional de Literatura. Traduz prosa e poesia. Publicou ensaios nas revistas Serrote e Zum. Foi curadora da Temporada no Futuro da Livraria Megafauna (2021).

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