Através dos espelhos
Por Miguel Del Castillo
6 de novembro de 2022
Todo pai e toda mãe provavelmente concordam que os filhos às vezes nos salvam – ainda que seja pelo trabalho que dão. No mês passado, meus filhos de certo modo me salvaram de ficar pensando 24 horas por dia nas agora passadas eleições. Embora o mais velho tivesse alguma noção do que estava acontecendo, a certa altura ele parou de perguntar como eu votaria ou quem era a pessoa no adesivo que a gente colou no carro, e voltou toda a sua atenção para o Dia das Crianças. Nesse espírito, e também para terminar num tom mais esperançoso – já que, quando pensamos no futuro da nação, são as crianças que temos em mente –, resolvi dedicar esta que é minha última coluna a um livro infantil – ilustrado, é claro, por fotografias. Um livro que fala com as crianças mas também conosco de maneira singular. Trata-se de Contradança (2011), do autor e ilustrador Roger Mello.
Sabemos, desde Alice através do espelho, que o reflexo que vemos não é totalmente exato, e além do mais pode ser o ponto de partida para a imaginação e para a descoberta de si. No caso da obra de Lewis Carroll, o mundo dentro do espelho é mais desarrumado que o real, um lugar onde as peças de xadrez e os retratos ganham vida e no qual é possível conversar com flores e animais. Neste e no anterior Alice no País das Maravilhas, a personagem acaba por nos ensinar, como diz Virginia Woolf, a ver o mundo (e a nós mesmos, eu acrescentaria) “de ponta-cabeça”.
No livro de Roger Mello, a protagonista é uma menina bailarina, filha de um vidraceiro que tem uma loja de espelhos. O texto é inteiro feito de diálogos, principalmente entre ela e um macaco. Ou melhor: entre ela e o reflexo de um macaco, que perdeu sua imagem ao espirrar e pede à menina que o ajude a encontrá-la. Ele sente saudades de sua imagem porque, como diz, dançavam juntos.
O autor trabalha com fotografias de situações encenadas com bonecos de madeira, espelhos e outros elementos, complementadas por desenhos. O diálogo entre as duas personagens chega a um momento tenso quando, ao tentar alcançar um espelho mais alto, onde em tese estaria a imagem perdida do macaco, a menina o quebra “em mil pedaços”. O macaco, porém, tem um jeito de “desquebrá-lo”, mas antes encontra sua imagem num dos cacos. A protagonista tenta mostrar como se faz um salto mortal, mas quebra mais um espelho – e nesse momento o jogo se inverte, pois os diálogos começam a se confundir e já não sabemos se quem fala e dança é a menina ou seu reflexo, o macaco ou seu reflexo. Assim, há uma descoberta da possibilidade de um eu múltiplo – que é múltiplo também por estar aberto à imaginação, já que imaginar é dançar consigo e, nesse processo, ir se encontrando e se entendendo. Sentimentos de medo e coragem perpassam a personagem nesse ínterim, além da lembrança saudosa de uma mãe que dançava como ela mas não está mais presente, evocada num diálogo final com o pai.
Não vou resistir a citar outro livro infantil, esse com ilustrações à mão mesmo, cuja temática é muito próxima desse. Trata-se de Espelho (2021), da sul-coreana Suzy Lee. Neste livro-imagem (isto é, sem palavras), a autora usa habilmente a costura central do livro como linha divisória entre a realidade e a reflexão – a moldura do espelho é a própria página. Na história, uma menina se assusta com seu próprio reflexo, mas depois se põe a brincar com ele, fazendo caretas e gestos cada vez mais desafiadores. Quando enfim toca no espelho, ocorre uma pequena explosão de tinta, que vai aumentando ao longo das páginas conforme a brincadeira se intensifica. De repente, ela e seu reflexo começam a se juntar no meio, até desaparecerem por completo. Quando reaparecem, ensaiam uma dança, só que os movimentos passam a ficar desencontrados, e a certa altura a menina se irrita com sua imagem e empurra o espelho, que estilhaça no chão – lembrando-nos que essa jornada de conhecer a si mesmo e de reconhecer identidades emergentes passa também, muitas vezes, por sentir raiva e até desafiar aquilo que vemos no espelho a priori.
Voltando ao livro de Roger Mello, o que o autor realiza, me parece, é uma espécie de teatro de brinquedos feitos à mão, animado por um jogo de montagens, sombras e espelhamentos, e trazido à vida pela fotografia.
Pois Contradança fala de fotografia, esse meio que se tornou tão corriqueiro para nós. Ou seja, há mais uma volta aqui, na qual reside a engenhosidade de Roger Mello, já que se pode dizer que fotografar é um jogo de espelhos. Em seu início, nos idos do século XIX, a fotografia foi entendida como o espelho mais fiel da realidade, e ainda hoje há uma enorme dificuldade de abandonar essa concepção. Ocorre que a imagem fotográfica fala por si, é passível de intervenção; o que o obturador da câmera capta quase sempre pertence ao mundo, mas não é seu espelho exato: é como o fotógrafo o vê, ou como ele deseja vê-lo, interpretá-lo, recortá-lo. Assim como esse teatro de espelhamentos que Mello cria diante e através da câmera, o que acontece a sua personagem é também um exercício de imaginação que envolve agência e desejo; um exercício de captura e reconhecimento de si em diálogo com o mundo ao redor.
Miguel Del Castillo é escritor, tradutor, editor e curador, autor de Restinga (2015) e Cancún (2019, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura). Foi editor da Cosac Naify e do site da revista ZUM. É curador da Biblioteca de Fotografia do Instituto Moreira Salles. De novembro de 2021 a novembro de 2022, resenhou livros de fotografia para o site da Megafauna.