Buscar
0

Crentes, bananas e messias

Por Miguel Del Castillo

5 de dezembro de 2021
Compartilhar

“Deus, pátria, família”: o lema da Ação Integralista Brasileira dos anos 1930, inspirado no fascismo italiano e que hoje encontra ecos no trumpismo, foi adotado por Jair Bolsonaro desde sua campanha (até que meses atrás ele assinou uma carta à nação com o slogan ipsis litteris). Esse tripé sobre o qual o conservadorismo contemporâneo insiste em se armar está na gênese de um dos fotolivros do ano: República das Bananas (2021), do artista paranaense Shinji Nagabe.

“Foi minha resposta às eleições de 2018 no Brasil. Eu queria dar uma banana pra todo mundo, queria chamar todo mundo de ‘banana’”, disse o autor, numa conversa recente. Nagabe reuniu essa vontade e a transformou numa alegoria imagética inventiva e eficaz, construindo em seu livro uma república fictícia cujo poder foi tomado por um ditador de extrema direita.

E há bananas por todas as páginas. Nos personagens, quando retratados em seu “ideal conservador”, as bananas são vendas nos olhos e tapa-bocas, mas, nas imagens em que os modelos posam como o “desvio” – obsceno, caricatural, inapropriado, tentador – desse ideal, funcionam como adereços e objetos lúdicos, num inteligente jogo de dípticos. Bananas são usadas para fabricar as armas caseiras da resistência – coquetéis molotov, facas, armas de fogo e outras criações do artista –, mas também surgem como enfeites e objetos sacros (uma Nossa Senhora Aparecida, uma banana em um cálice da comunhão). Há uma taxonomia das espécies de bananas, e nelas também se inscrevem ora versículos bíblicos e palavras de ordem da nova constituição, ora pedidos secretos de ajuda. A esses conjuntos, o autor entremeia fotografias que ajudam a compor uma paisagem desse lugar satírico e alguma ação: bananeiras in natura e fachadas de igrejas, sobretudo evangélicas, além de fotos que simulam revolucionários em atividade – num esconderijo improvisado com uma metralhadora-banana ou na rua queimando uma foto do ditador.

O primeiro elemento do lema integralista desponta inequivocamente aqui, e, no Brasil de 2021, logo remete ao Deus cristão, sobretudo àquele definido por uma parcela considerável dos evangélicos, religião que parece caminhar para se tornar a de maior adesão no país. Essa distopia teocrático-totalitária da República das Bananas faz lembrar a Gilead da obra de Margaret Atwood, O conto da aia, sobretudo quando, nas bananas, vemos escritos versículos da Bíblia que supostamente falam da superioridade do homem em relação à mulher, da heteronormatividade como regra etc.

É possível que o leitor perceba certo maniqueísmo na abordagem de Nagabe, principalmente pela operação em dípticos e contrastes conceituais. E de fato há, mas me parece um maniqueísmo paródico, proposital – e que, extrapolando o livro, pode inclusive apontar para outras formas de religiosidade. Afinal, o mesmo material, a banana, pode ser tanto elemento cegante como combustível de resistência, e há cada vez mais cristãos progressistas a contestar fundamentalismos hoje, vozes que precisam ter mais espaço no debate público para que saiamos de lugares-comuns que geram preconceitos e impossibilitam a comunicação (vale espiar esta pesquisa recente para ver que o perfil dos evangélicos está longe de ser o que se imagina). Progressismo dentro de religiões cristãs não é novidade, aliás, basta pensar na teologia da libertação, por exemplo, surgida entre católicos na América Latina nos anos 1970 e que deu muitos frutos no Brasil, ou em sua prima mais nova, a teologia da missão integral, bastante difundida entre grupos protestantes.

Ao investigar a vida de sete homens que alegam ser a materialização da segunda vinda de Cristo, o fotojornalista norueguês Jonas Bendiksen realizou um trabalho que se relaciona ao de Nagabe pelo tema do messianismo, porém sob um prisma mais literal e menos político. The Last Testament (2017) estampa já na capa a segunda parte do versículo favorito de Bolsonaro e de seus apoiadores: “a verdade vos libertará” (João 8:32b). Em cada capítulo há textos do que seria a teologia do messias em questão, um relato do fotógrafo sobre sua experiência com ele e, então, as fotografias.

Um cético contando essas histórias poderia ser a receita para uma abordagem ácida, e ela de fato o é no caso do “Jesus” filipino – que possui uma seita com milhares de seguidores e não autorizou o acesso do fotógrafo –, e no do nosso INRI Cristo – cuja comicidade é quase implícita, mas que acaba se revelando alguém que sabe controlar com eficiência o que deseja mostrar. Em alguns casos, porém, o que se vê é terno e muito humano. É comovente pensar num messias como o da Zâmbia, que quando não está pregando trabalha como taxista e por vezes tem de trocar o pneu ou empurrar o próprio carro, ou num ex-agente secreto britânico que um dia acordou com a certeza de ser o novo Cristo e que inclusive se traveste de mulher para, por meio desse alter ego, apontar aspectos femininos de Deus.

Uma maneira de ler esse livro seria ver esses relatos de fés extravagantes pelas lentes do surrealismo – também evocado na alegoria de República das Bananas –, as sete fotorreportagens como sete fábulas sobre os desdobramentos da presença de Cristo em meio à humanidade.

*

Seria possível citar, ainda, outros importantes trabalhos relacionados ao tema, como The Imitation of Christ, de William E. Jones, que investiga as relações entre imagens da tradição cristã e imagens de revoluções, ou o já clássico Holy Bible, em que a dupla Broomberg e Chanarin justapõe fotos de arquivo (que retratam desde situações mais cotidianas a guerras e torturas) ao texto sagrado. Quem sabe numa próxima coluna.

Mas as imagens desses messias demasiadamente humanos e daquelas bananas subversivas ecoam. E me remetem, já que nos aproximamos do Natal, à precariedade que permeia o episódio do nascimento de Jesus – seus pais não encontravam pouso naquele povoado num canto esquecido do Império Romano, e o bebê precisou ser acomodado numa peça que normalmente servia de receptáculo para o alimento dos animais –, que acentua ainda mais a radicalidade da narrativa da encarnação. “Seu lugar é com aqueles que não pertencem, que são rejeitados pelos poderosos e taxados de fracos”, escreveu certa vez o teólogo e monge Thomas Merton; “seu lugar é com os desacreditados, com os que têm seu status como pessoa negado, com os que foram torturados e exterminados. Cristo está presente, neste mundo, com aqueles que não têm lugar”. No meu sonho algo surrealista, essas imagens e essas ideias poderiam, quem sabe, apontar caminhos possíveis para este Brasil.

© Carol Ribeiro

Miguel Del Castillo é escritor, tradutor, editor e curador, autor de Restinga (2015) e Cancún (2019, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura). Foi editor da Cosac Naify e do site da revista ZUM. É curador da Biblioteca de Fotografia do Instituto Moreira Salles. De novembro de 2021 a novembro de 2022, resenhou livros de fotografia para o site da Megafauna.

Livros relacionados


Outros textos do autor

Através dos espelhos

6 de novembro de 2022
Ver mais

O Brasil do trauma

23 de setembro de 2022
Ver mais

Neurodivergência e afeto em dois fotolivros

28 de agosto de 2022
Ver mais

O Brasil na Rodoviária de Brasília

31 de julho de 2022
Ver mais

Rio Doce, Tchernóbil, Hiroshima: três réquiens visuais

3 de julho de 2022
Ver mais

As trilhas do luto

4 de junho de 2022
Ver mais

O familiar, o sagrado e a fotografia como encontro

8 de maio de 2022
Ver mais

Hidrelétricas e ditaduras

3 de abril de 2022
Ver mais

O fermento da memória

30 de janeiro de 2022
Ver mais

O desconcerto do mundo

6 de março de 2022
Ver mais

Fotolivros, true crime e a desconfiança da memória

2 de novembro de 2021
Ver mais